domingo, 30 de março de 2008

Ditoso seja aquele que somente

Ditoso seja aquele que somente
Se queixa de amorosas esquivanças;
Pois por elas não perde as esperanças
De poder nalgum tempo ser contente.

Ditoso seja quem, estando absente,
Não sente mais que a pena das lembranças,
Porque, inda mais que se tema de mudanças,
Menos se teme a dor quando se sente.

Ditoso seja, enfim, qualquer estado,
Onde enganos, desprezos e isenção
Trazem o coração atormentado.

Mas triste de quem se sente magoado
De erros em que não pode haver perdão,
Sem ficar na alma a mágoa do pecado.

Luís Vaz de Camões

sábado, 29 de março de 2008

Senhor João Lopes, o meu baixo estado

Senhor João Lopes, o meu baixo estado
ontem vi posto em grau tão excelente
que vós, que sois enveja a toda a gente,
só por mim vos quiséreis ver trocado.

Vi o gesto suave e delicado
que já vos fez, contente e descontente,
lançar ao vento a voz tão docemente
que fez o ar sereno e sossegado.

Vi-lhe em poucas palavras dizer quanto
ninguém diria em muitas; eu só, cego,
magoado fiquei na doce fala.

Mas mal haja a Fortuna e o Moço cego:
um, porque os corações obriga a tanto;
outra, porque os estados desiguala.

Luís Vaz de Camões

Senhora já dest' alma, perdoai

Senhora já dest' alma, perdoai
de um vencido de Amor os desatinos;
e sejam vossos olhos tão beninos
com este puro amor, que d'alma sai.

A minha pura fé somente olhai,
e vede meus extremos se são finos;
e se de algüa pena forem dinos,
em mim, Senhora minha, vos vingai.

Não seja a dor, que abrasa o triste peito,
causa por onde pene o coração,
que tanto em firme amor vos é sujeito.

Guardai-vos do que alguns, Dama, dirão;
que, sendo raro em tudo vosso objeito,
possa morar em vós ingratidão.

Luís Vaz de Camões

Senhora minha, se a Fortuna imiga

Senhora minha, se a Fortuna imiga,
que em minha fim com todo o Céu conspira,
os olhos meus de ver os vossos tira,
por que em mais graves casos me persiga;

comigo levo esta alma, que se obriga,
na mor pressa de mar, de fogo, de ira,
a dar-vos a memória, que suspira
só por fazer convosco eterna liga.

Nesta alma, onde a Fortuna pode pouco,
tão viva vos terei, que frio e fome
vos não possam tirar, nem vãos perigos.

Antes co som da voz, trémulo e rouco,
bradando por vós, só com vosso nome,
farei fugir os ventos e os imigos.

Luís Vaz de Camões

Sentindo-se tomada a bela esposa

Sentindo-se tomada a bela esposa
de Céfalo, no crime consentido,
para os montes fugia do marido;
e não sei se de astuta ou vergonhosa.

Porque ele, enfim, sofrendo a dor ciosa.
de amor cego e forçoso compelido,
após ela se vai como perdido,
já perdoando a culpa criminosa.

Deita-se aos pés da Ninfa endurecida,
que do cioso engano está agravada;
já lhe pede perdão, já pede a vida.

Ó força de afeição desatinada!
Que de culpa contra ele cometida,
perdão pedia à parte que é culpada!

Luís Vaz de Camões

Sete anos de pastor Jacob servia

Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora assi negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida;

Começa de servir outros sete anos,
Dizendo: — Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida!

Luís Vaz de Camões

Suspiros inflamados, que cantais

Suspiros inflamados, que cantais
a tristeza com que eu vivi tão ledo!
Eu mouro e não vos levo, porque hei medo
que, ao passar do Lete, vos percais.

Escritos para sempre já ficais
onde vos mostrarão todos co dedo
como exemplo de males; que eu concedo
que para aviso de outros estejais.

Em quem, pois, virdes falsas esperanças
de Amor e da Fortuna, cujos danos
alguns terão por bem-aventuranças,

dizei-lhe que os servistes muitos anos;
e que em Fortuna tudo são mudanças,
e que em Amor não há senão enganos.

Luís Vaz de Camões

Sustenta meu viver üa esperança

Sustenta meu viver üa esperança
derivada de um bem tão desejado
que, quando nela estou mais confiado,
mor dúvida me põe qualquer mudança.

E quando inda este bem na mor pujança
de seus gostos me tem mais enlevado,
me atormenta então ver eu que, alcançado
será por quem de vós não tem lembrança.

Assi que nestas redes enlaçado,
a penas dou a vida, sustentando
üa nova matéria a meu cuidado;

suspiros d' alma tristes arrancando,
dos silvos de üa pedra acompanhado,
estou matérias tristes lamentando.

Luís Vaz de Camões

Tal mostra dá de si vossa figura

Tal mostra dá de si vossa figura,
Sibela, clara luz da redondeza,
que as forças e o poder da Natureza
com sua claridade mais apura.

Quem viu üa confiança tão segura,
tão singular esmalte da beleza,
que não padeça mais, se ter defesa
contra vossa gentil vista procura?

Eu, pois, por escusar essa esquivança,
a razão sujeitei ao pensamento
que, rendida, os sentidos lhe entregaram.

Se vos ofende o meu atrevimento,
inda podeis tomar nova vingança
nas relíquias da vida, que escaparam.

Luís Vaz de Camões

Todas as almas tristes se mostravam

Todas as almas tristes se mostravam
pela piadade do Feitor divino,
onde, ante o seu aspecto benino,
o devido tributo lhe pagavam.

Meus sentidos então livres estavam
(que até i foi costume o seu destino),
quando uns olhos, de que eu não era dino,
a furto da Razão me salteavam.

A nova vista me cegou de todo;
nasceu do descostume a estranheza
da suave e angélica presença.

Pera remediar-me não há i modo?
Oh! porque fez a humana natureza
entre os nascidos tanta diferença?

Luís Vaz de Camões

Todo o animal da calma repousava

Todo o animal da calma repousava;
só Liso o ardor dela não sentia,
que o repouso do fogo em que ardia
consistia na Ninfa que buscava.

Os montes parecia que abalava
o triste som das mágoas que dezia;
mas nada o duro peito comovia,
que na vontade de outrem posto estava.

Cansado já de andar pela espessura,
no tronco de üa faia, por lembrança,
escreveu estas palavras de tristeza

«Nunca ponha ninguém sua esperança
em peito feminil que, de natura,
somente em ser mudável tem firmeza».

Luís Vaz de Camões

Tomava Daliana por vingança

Tomava Daliana por vingança
da culpa do pastor, que tanto amava,
casar com Gil vaqueiro; e em si vingava
o erro alheio e pérfida esquivança.

A discrição segura, a confiança,
as rosas que seu rosto debuxava,
o descontentamento lhas secava,
que tudo muda üa áspera mudança.

Gentil planta disposta em seca terra,
lindo fruito de dura mão colhido,
lembranças d'outro amor e fé perjura

tornaram verde prado em dura serra;
interesse enganoso, amor fingido
fizeram desditosa a fermosura.

Luís Vaz de Camões

Tomou-me vossa vista soberana

Tomou-me vossa vista soberana
adonde tinha as armas mais à mão,
por mostrar que quem busca defensão
contra esses belos olhos, que se engana.

Por ficar da vitória mais ufana,
deixou-me armar primeiro da Razão;
cuidei de me salvar, mas foi em vão,
que contra o Céu não val defensa humana.

Mas porém se vos tinha prometido
o vosso alto destino esta vitória,
ser-vos tudo bem pouco está sabido;

que, posto que estivesse apercebido,
não levais de vencer-me grande glória:
maior a levo eu de ser vencido.

Luís Vaz de Camões

Tornai essa brancura à alva açucena

Tornai essa brancura à alva açucena,
e essa purpúrea cor às puras rosas;
tornai ao sol as chamas luminosas
dessa vista que a roubos vos condena.

Tornai à suavíssima sirena
dessa voz as cadências deleitosas;
tornai a graça às Graças, que queixosas
estão de a ter por vós menos serena.

Tornai à bela Vénus a beleza;
a Minerva o saber, o engenho e a arte;
e a pureza à castíssima Diana.

Despojai-vos de toda essa grandeza
de dões; e ficareis em toda a arte
convosco só, que é só ser inumana.

Luís Vaz de Camões

Üa admirável erva se conhece

Üa admirável erva se conhece
que vai ao Sol seguindo, de hora em hora,
logo que ele do Eufrates se vê fora,
e, quando está mais alto, então florece.

Mas, quando ao Oceano o carro dece,
toda a sua beleza perde Flora,
porque ela se emurchece e se descora;
tanto coa luz ausente se entristece!

Meu Sol, quando alegrais esta alma vossa,
mostrando-lhe esse rostro que dá vida,
cria flores em seu contentamento.

Mas logo em não vos vendo, entristecida,
se murcha e se consume em grão tormento.
Nem há quem vossa ausência sofrer possa.

Luís Vaz de Camões

Um mover de olhos, brando e piadoso

Um mover de olhos, brando e piadoso,
Sem ver de quê; um riso brando e honesto,
Quase forçado; um doce e humilde gesto,
De qualquer alegria duvidoso;

Um despejo quieto e vergonhoso;
Um repouso gravíssimo e modesto;
Üa pura bondade, manifesto
Indício da alma, limpo e gracioso;

Um escolhido ousar; úa brandura;
Um medo sem ter culpa; um ar sereno;
Um longo e obediente sofrimento

Esta foi a celeste fermosura
Da minha Circe, e o mágico veneno
Que pôde transformar meu pensamento.

Luís Vaz de Camões

Vai-me gastando Amor e um pensamento

Vai-me gastando Amor e um pensamento
que me inclina a seguir meus próprios danos,
a esperança, o ser, o gosto e os anos,
que para mi são mil cada momento.

Os suspiros que em vão entrego ao vento
paga-mos quem mos causa em desenganos;
e, se quero fingir novos enganos,
não mos quer consentir o entendimento.

Se pretendo mostrar quanto padeço,
falta-me a voz, o alento e o sentido;
e a triste vida, não, porque a aborreço.

O peito em vivas chamas convertido,
enfim, mostre seu mal, pois já confesso
que nem dizer se pode nem ser crido.

Luís Vaz de Camões

Vencido está de Amor meu pensamento

Vencido está de Amor meu pensamento
o mais que pode ser vencida a vida,
sujeita a vos servir instituída,
oferecendo tudo a vosso intento.

Contente deste bem, louva o momento
ou hora em que se viu tão bem perdida;
mil vezes desejando a tal ferida
outra vez renovar seu perdimento.

Com essa pretensão está segura
a causa que me guia nesta empresa,
tão estranha, tão doce, honrosa e alta.

Jurando não seguir outra ventura,
votando só por vós rara firmeza,
ou ser no vosso amor achado em falta.

Luís Vaz de Camões

Verdade, Amor, Razão, Merecimento

Verdade, Amor, Razão, Merecimento
Qualquer alma farão segura e forte;
Porém, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte
Têm do confuso mundo o regimento.

Efeitos mil revolve o pensamento,
E não sabe a que causa se reporte;
Mas sabe que o que é mais que vida e morte,
Que não o alcança o humano entendimento.

Doutos varões darão razões subidas;
Mas são experiências mais provadas,
E por isso é melhor ter muito visto.

Cousas há i que passam sem ser cridas
E cousas cridas há sem ser passadas...
Mas o melhor de tudo é crer em Cristo.

Luís Vaz de Camões

Vós que, de olhos suaves e serenos

Vós que, de olhos suaves e serenos,
com justa causa a vida cativais,
e que os outros cuidados condenais
por indevidos, baixos e pequenos;

se ainda do Amor domésticos venenos
nunca provastes, quero que saibais
que é tanto mais o amor despois que amais,
quanto são mais as causas de ser menos.

E não cuide ninguém que algum defeito,
quando na cousa amada se apresenta,
possa diminuir o amor perfeito.

Antes o dobra mais e, se atormenta,
pouco e pouco o desculpa o brando peito;
que Amor com seus contrairos se acrescenta.

Luís Vaz de Camões

Vós outros, que buscais repouso certo

Vós outros, que buscais repouso certo
Na vida, com diversos exercícios;
A quem, vendo do mundo os benefícios,
O regimento seu está encoberto;

Dedicai, se quereis, ao desconcerto
Novas honras e cegos sacrifícios;
Que, por castigo igual de antigos vícios,
Quer Deus que andem as cousas por acerto.

Não caiu neste modo de castigo
Quem pôs culpa à Fortuna, quem somente
Crê que acontecimentos há no mundo.

A grande experiência é grão perigo;
Mas o que a Deus é justo e evidente
Parece injusto aos homens e profundo.

Luís Vaz de Camões

Se a Fortuna inquieta e mal olhada

Se a Fortuna inquieta e mal olhada,
que a justa lei do Céu consigo infama,
a vida quieta, que ela mais desama,
me concedera, honesta e repousada;

pudera ser que a Musa, alevantada
com luz de mais ardente e viva flama,
fizera ao Tejo lá na pátria cama
adormecer co som da lira amada.

Porém, pois o destino trabalhoso,
que me escurece a Musa fraca e lassa,
louvor de tanto preço não sustenta,

a vossa, de louvar-me pouco escassa,
outro sujeito busque valeroso,
tal qual em vós ao mundo se apresenta.

Luís Vaz de Camões

Se a ninguém tratais com desamor

Se a ninguém tratais com desamor,
antes a todos tendes afeição,
e se a todos mostrais um coração
cheio de mansidão, cheio de amor;

desde hoje me tratai com desfavor,
mostrai-me um ódio esquivo, üa isenção;
poderei acabar de crer então
que somente a mi me dais favor.

Que, se tratais a todos brandamente,
claro é que aquele é só favorecido
a quem mostrais irado o continente.

Mal poderei eu ser de vós querido,
se tendes outro amor na alma presente,
que amor é um, não pode ser partido.

Luís Vaz de Camões

Se algüa hora em vós a piedade

Se algüa hora em vós a piedade
de tão longo tormento se sentira,
não consentira Amor que me partira
de vossos olhos, minha saudade.

Apartei-me de vós; mas a vontade,
que pelo natural n'alma vos tira,
me faz crer que esta ausência é de mentira;
mas inda mal, porém, porque é verdade.

Ir-me-ei, Senhora; e, neste apartamento,
tomarão tristes lágrimas vingança
nos olhos de quem fostes mantimento.

E assi darei vida a meu tormento:
que, enfim, cá me achará minha lembrança
sepultado no vosso esquecimento.

Luís Vaz de Camões

Se as penas com que Amor tão mal me trata

Se as penas com que Amor tão mal me trata
quiser que tanto tempo viva delas
que veja escuro o lume das estrelas,
em cuja vista o meu se acende e mata;

e se o tempo, que tudo desbarata,
secar as frescas rosas sem colhê-las,
mostrando a linda cor das tranças belas
mudada de ouro fino em bela prata;

vereis, Senhora, então também mudado
o pensamento e aspereza vossa,
quando não sirva já sua mudança.

Suspirareis então pelo passado,
em tempo quando executar-se possa
em vosso arrepender minha vingança.

Luís Vaz de Camões

Se com desprezos, Ninfa, te parece

Se com desprezos, Ninfa, te parece
que podes desviar do seu cuidado
um coração constante, que se of'rece
a ter por glória o ser atormentado,

deixa a tua porfia e reconhece
que mal sabes de amor desenganado,
pois não sentes nem vês que em teu mal crece,
crecendo em mi, de ti mais desamado.

O esquivo desamor com que me tratas
converte em piadade, se não queres
que creça o meu querer em teu desgosto.

Vencer-me com cruezas nunca esperes;
bem me podes matar, e bem me matas;
mas sempre há-de viver meu pressuposto.

Luís Vaz de Camões

Se cuidasse que nesse peito isento

Se cuidasse que nesse peito isento
inda algum tempo minha grande dor
vos fizesse sentir, não digo amor,
senão um piadoso sentimento;

tamanho fora meu contentamento
que o mal que por vós passo, inda que mor,
sem pena, sem cuidado, sem temor,
sem queixumes passara este tormento.

Porém como, Senhora, já conheço
a vossa condição isenta e dura
no pouco que sentis o que padeço,

não há i senão queixar-me da Ventura
pois, em lugar do bem que vos mereço,
males em tanto mal me dais por cura.

Luís Vaz de Camões

Se de vosso fermoso e lindo gesto

Se de vosso fermoso e lindo gesto
nasceram lindas flores para os olhos,
que para o peito são duros abrolhos,
em mim se vê mui claro e manifesto.

Pois vossa fermosura e vulto honesto,
em os ver, de boninas vi mil molhos;
mas, se meu coração tivera antolhos,
não vira em vós seu dano o mal funesto;

um mal visto por bem, um bem tristonho,
que me traz elevado o pensamento
em mil, porém diversas, fantasias,

nas quais eu sempre ando, e sempre sonho.
E vós não cuidais mais que em meu tormento,
em que fundais as vossas alegrias.

Luís Vaz de Camões

Se em mi, ó Alma, vive mais lembrança

Se em mi, ó Alma, vive mais lembrança
que aquela só da glória de querer-vos,
eu perca todo o bem que logro em ver-vos,
e de ver-vos também toda a esperança.

Veja-se em mi tão rústica esquivança
que possa indino ser de conhecer-vos;
e, quando em mor empenho de aprazer-vos,
vos ofenda, se em mi houver mudança.

Confirmado estou já nesta certeza;
examine-me vossa crueldade,
exprimente-se em mi vossa dureza.

Conhecei já de mi tanta verdade,
pois, em penhor e fé desta pureza,
tributo vos fiz ser o que é vontade.

Luís Vaz de Camões

Se lágrimas choradas de verdade

Se lágrimas choradas de verdade
abrandar podem um coração duro,
porque as minhas que nacem d' um amor puro
vos não movem, Senhora, a piadade?

Pois por vós perdi a liberdade,
e da vida não estou inda seguro,
rompei de desamor tão forte muro
e não useis de vossa crueldade.

A males nunca vistos dai já fim,
e não queirais ser, sendo fermosa,
havida por cruel e homicida.

Pera vós vos queria eu piadosa;
que de o nunca serdes pera mim
a esperança tenho já perdida.

Luís Vaz de Camões

Se os capitães antigos colocados

Se os capitães antigos colocados
naqueles triunfos altos de vitória
feriram nas orelhas vossa história,
de vergonha e temor foram pasmados.

Por terra logo todos derribados
troféus, fama e sua grão memória,
dando lugar ao louvor vosso e glória,
que sós no mundo fossem celebrados.

Na Antiguidade levam-vos vantagem
que está de errores cheia em toda parte,
como se mostra bem no que temos visto.

Vós, nas obras, feitos e linhagem
que na milícia sois o mesmo Marte
e em virtudes cumpris a lei de Cristo.

(De Dom Constantino cante o universo,
se bastar língua, ou prosa, engenho, ou verso.)

Luís Vaz de Camões

Se tanta pena tenho merecida

Se tanta pena tenho merecida
em pago de sofrer tantas durezas,
provai, Senhora, em mi vossas cruezas,
que aqui tendes na alma oferecida.

Nela experimentai, se sois servida,
desprezos, disfavores e asperezas;
que mores sofrimentos e firmezas
sustentarei na guerra desta vida.

Mas contra vossos olhos quais serão?
Forçado é que tudo se lhe renda;
mas porei por escudo o coração.

Porque em tão dura e áspera contenda,
é bem que, pois não acho defensão,
com me meter nas lanças me defenda.

Luís Vaz de Camões

Se tomar minha pena em penitência

Se tomar minha pena em penitência
do erro em que caiu o pensamento,
não abranda, mas dobra meu tormento;
a isto e a mais obriga a paciência.

E se üa cor de morto na aparência,
um espalhar suspiros vãos ao vento,
em vós não faz, Senhora, movimento,
fique meu mal em vossa consciência.

E se de qualquer áspera mudança
toda a vontade isenta Amor castiga
— como eu vi bem no mal que me condena —

e se em vós não se entende haver vingança,
será forçado – pois Amor me obriga -
que eu só de vossa culpa pague a pena.

Luís Vaz de Camões

Se, despois de esperança tão perdida

Se, despois de esperança tão perdida,
Amor pola ventura consentisse
que ainda algüa hora breve alegre visse
de quantas tristes viu tão longa vida;

üa alma já tão fraca e tão caída,
por mais alto que a sorte me subisse,
não tenho para mim que consentisse
alegria tão tarde consentida.

Não tão somente Amor me não mostrou
üa hora em que vivesse alegremente,
de quantas nesta vida me negou;

mas inda tanta pena me consente,
que co contentamento me tirou
o gosto de algüa hora ser contente.

Luís Vaz de Camões

Seguia aquele fogo, que o guiava

Seguia aquele fogo, que o guiava,
Leandro, contra o mar e contra o vento:
as forças lhe faltavam já e o alento;
Amor lhas refazia e renovava.

Despois que viu que a alma lhe faltava,
não esmorece; mas, no pensamento,
— que a língua já não pode – seu intento
ao mar, que lho cumprisse, encomendava.

«Ó mar – dizia o moço só consigo —
já te não peço a vida; só queria
que a de Hero me salves; não me veja...

Este meu corpo morto, lá o desvia
daquela torre. Sê-me nisto amigo,
pois no meu maior bem me houveste enveja!»

Luís Vaz de Camões

Sempre, cruel Senhora, receei

Sempre, cruel Senhora, receei,
medindo vossa grã desconfiança,
que desse em desamor vossa tardança,
e que me perdesse eu, pois vos amei.

Perca-se, enfim, já tudo o que esperei,
pois noutro amor já tendes esperança.
Tão patente será vossa mudança
quanto eu encobri sempre o que vos dei.

Dei-vos a alma, a vida e o sentido;
de tudo o que em mim há vos fiz senhora.
Prometeis e negais o mesmo Amor.

Agora tal estou que, de perdido,
não sei por onde vou; mas algü' hora
vos dará tal lembrança grande dor.

Luís Vaz de Camões

Quem diz que Amor é falso ou enganoso

Quem diz que Amor é falso ou enganoso,
Ligeiro, ingrato, vão desconhecido,
Sem falta lhe terá bem merecido
Que lhe seja cruel ou rigoroso.

Amor é brando, é doce, e é piedoso.
Quem o contrário diz não seja crido;
Seja por cego e apaixonado tido,
E aos homens, e inda aos Deuses, odioso.

Se males faz Amor em mim se vêem;
Em mim mostrando todo o seu rigor,
Ao mundo quis mostrar quanto podia.

Mas todas suas iras são de Amor;
Todos os seus males são um bem,
Que eu por todo outro bem não trocaria.

Luís Vaz de Camões

sexta-feira, 28 de março de 2008

Julga-me a gente toda por perdido

Julga-me a gente toda por perdido
vendo-me, tão entregue a meu cuidado.
andar sempre dos homens apartado
e dos tratos humanos esquecido.

Mas eu, que tenho o mundo conhecido
e quase que sobre ele ando dobrado,
tenho por baixo, rústico, enganado,
quem não é com meu mal engrandecido.

Vão revolvendo a terra, o mar e o vento,
busque riquezas, honras a outra gente,
vencendo ferro, fogo, frio e calma;

que eu só, em humilde estado, me contento
de trazer esculpido eternamente
vosso fermoso gesto dentro n'alma.

Luís Vaz de Camões

Leda serenidade deleitosa

Leda serenidade deleitosa,
que representa em terra um paraíso:
entre rubis e perlas, doce riso;
debaixo de ouro e neve, cor de rosa.

Presença moderada e graciosa,
onde ensinando estão despejo e siso
que se pode por arte e por aviso,
como por natureza, ser fermosa:

fala de quem a morte e a vida pende,
rara, suave; enfim, Senhora, vossa;
repouso nela alegre e comedido.

Estas as armas são com que me rende
e me cativa Amor; mas não que possa
despojar-me da glória de rendido.

Luís Vaz de Camões

Lembranças saudosas, se cuidais

Lembranças saudosas, se cuidais
de me acabar a vida neste estado,
não vivo com meu mal tão enganado
que não espere dele muito mais.

De muito longe já me costumais
a viver de algum bem desesperado;
já tenho co a Fortuna concertado
de sofrer os trabalhos que me dais.

Atado ao remo tenho a paciência
pera quantos desgostos der a vida;
cuide em quanto quiser o pensamento;

que pois não há i outra resistência
pera tão certa queda de subida,
aparar-lhe-ei debaixo o sofrimento.

Luís Vaz de Camões

Lindo e sutil trançado, que ficaste

Lindo e sutil trançado, que ficaste
em penhor do remédio que mereço,
se só contigo, vendo-te, endoudeço,
que fora cos cabelos que apertaste?

Aquelas tranças de ouro que ligaste,
que os raios do Sol têm em pouco preço,
não sei se para engano do que peço,
se para me atar, os desataste.

Lindo trançado, em minhas mãos te vejo,
e por satisfação de minhas dores
(como quem não tem outra) hei-de tomar-te.

E se não for contente meu desejo,
dir-lhe-ei que, nesta regra dos amores,
pelo todo também se toma a parte.

Luís Vaz de Camões

Males, que contra mi vos conjurastes

Males, que contra mi vos conjurastes,
quanto há-de durar tão duro intento?
Se dura porque dura meu tormento,
baste-vos quanto já me atormentastes.

Mas se assi perfiais porque cuidastes
derrubar meu tão alto pensamento,
mais pode a causa dele, em que o sustento,
que vós, que dela mesma o ser tomastes.

E pois vossa tenção, com minha morte,
há-de acabar o mal destes amores,
dai já fim a um tormento tão comprido,

por que de ambos contente seja a sorte:
vós, porque me acabastes, vencedores;
e eu, porque acabei de vós vencido.

Luís Vaz de Camões

Memória de meu bem, cortado em flores

Memória de meu bem, cortado em flores
por ordem de meus tristes e maus Fados,
deixai-me descansar com meus cuidados
nesta inquietação de meus amores.

Basta-me o mal presente e os temores
dos sucessos, que espero, infortunados;
sem que venham, de novo, bens passados
afrontar meu repouso com suas dores.

Perdi nüa hora quanto em termos
tão vagarosos e largos alcancei;
leixai-me, pois, lembranças desta glória.

Cumpre acabe a vida nestes ermos,
que neles com meu mal acabarei
mil vidas, não üa só, dura memória!

Luís Vaz de Camões

Memórias ofendidas que um só dia

Memórias ofendidas que um só dia
me não deixais em paz o pensamento,
não me daneis o gosto do tormento,
que quem vos ofendeu vos defendia.

Que me quereis? Olhai que se injuria
convosco o delicado sentimento
que me ficou do eterno apartamento
de quem já tem desfeita a morte fria.

Deixaram-me co a mágoa das ofensas;
levaram um remédio só que tinha.
Quem irá vencer a pena que alma sente,

onde achará do dano as recompensas,
se ainda de ser triste a dita minha
me não deixa um momento ser contente?

Luís Vaz de Camões

Moradoras gentis e delicadas

Moradoras gentis e delicadas
do claro e áureo Tejo, que metidas
estais em suas grutas escondidas,
e com doce repouso sossegadas:

agora estais de amores inflamadas,
nos cristalinos paços entretidas;
agora no exercício embevecidas
das telas de ouro puro matizadas.

Movei dos lindos rostos a luz pura
de vossos olhos belos, consentindo
que lágrimas derramem de tristura.

E assi, com dor mais própria, ireis ouvindo
as queixas que derramo da Ventura,
que com penas de Amor me vai seguindo.

Luís Vaz de Camões

Na desesperação já repousava

Na desesperação já repousava
o peito longamente magoado
e, com seu dano eterno concertado,
já não temia, já não desejava;

quando üa sombra vã me assegurava
que algum bem me podia estar guardado
em tão fermosa imagem, que o treslado
na alma ficou, que nela se enlevava.

Que crédito que dá tão facilmente
o coração àquilo que deseja,
quando lhe esquece o fero seu destino!

Oh! deixem-me enganar, que eu sou contente;
que, posto que maior meu dano seja,
fica-me a glória já do que imagino.

Luís Vaz de Camões

Na metade do Céu subido ardia

Na metade do Céu subido ardia
o claro, almo Pastor, quando deixavam
o verde pasto as cabras, e buscavam
a frescura suave da água fria.

Co a folha da árvore sombria,
do raio ardente as aves se emparavam;
o módulo cantar, de que cessavam,
só nas roucas cigarras se sentia;

quando Liso pastor, num campo verde
Natércia, crua Ninfa, só buscava
com mil suspiros tristes que derrama.

«Porque te vás, de quem por ti se perde,
para quem pouco te ama?» suspirava.
O Eco lhe responde: «Pouco te ama.»

Luís Vaz de Camões

Na ribeira do Eufrates assentado

Na ribeira do Eufrates assentado,
discorrendo me achei pela memória
aquele breve bem, aquela glória,
que em ti, doce Sião, tinha passado.

Da causa de meus males perguntado
me foi: «Como não cantas a história
de teu passado bem, e da vitória
que sempre de teu mal hás alcançado?

Não sabes que, a quem canta, se lhe esquece
o mal, inda que grave e rigoroso?
Canta, pois, e não chores dessa sorte».

Respondo com suspiros: «Quando crece
a muita saudade, o piadoso
remédio é não cantar senão a morte».

Luís Vaz de Camões

Náiades, vós, que os rios habitais

Náiades, vós, que os rios habitais
que os saudosos campos vão regando,
de meus olhos vereis estar manando
outros, que quase aos vossos são iguais.

Dríades, vós, que as setas atirais,
os fugitivos cervos derrubando,
outros olhos vereis que, triunfando,
derrubam corações, que valem mais.

Deixai as aljavas logo, e as águas frias,
e vinde, Ninfas minhas, se quereis
saber como de uns olhos nacem mágoas;

vereis como se passam em vão os dias;
mas não vireis em vão, que cá achareis
nos seus as setas, e nos meus as águas.

Luís Vaz de Camões

Não passes, caminhante! Quem me chama?

«Não passes, caminhante!» «Quem me chama?»
«Üa memória nova e nunca ouvida
dum, que trocou finita e humana vida,
por divina, infinita e clara fama».

«Quem é que tão gentil louvor derrama?»
«Quem derramar seu sangue não duvida
por seguir a bandeira esclarecida
de um capitão de Cristo, que mais ama».

«Ditoso fim, ditoso sacrifício,
que a Deus se fez e ao mundo juntamente;
apregoando direi tão alta sorte».

«Mais poderás contar a toda a gente:
que sempre deu sua vida claro indício
de vir a merecer tão santa morte».

Luís Vaz de Camões

Não vás ao monte, Nise, com teu gado

Não vás ao monte, Nise, com teu gado,
que eu lá vi que Cupido te buscava;
por ti somente a todos perguntava,
no gesto menos plácido que irado.

Ele publica, enfim, que lhe hás roubado
os melhores farpões da sua aljava;
e com um dardo ardente assegurava
traspassar esse peito delicado.

Fuge de ver-te lá nesta aventura,
porque, se contra ti o tens iroso,
pode ser que te alcance com mão dura.

Mas ai! que em vão te advirto temeroso,
se à tua incomparável fermosura
se rende o dardo seu mais poderoso!

Luís Vaz de Camões

Nem o tremendo estrépito da guerra

Nem o tremendo estrépito da guerra,
com armas, com incêndios espantosos,
que despacham pelouros perigosos,
bastantes a abalar üa alta serra,

podem pôr medo a quem nenhum encerra,
depois que viu os olhos tão fermosos,
por quem o horror nos casos pavorosos
de mi todo se aparta e se desterra.

A vida posso ao fogo e ferro dar,
e perdê-la em qualquer duro perigo,
e nele, como Fénix, renovar.

Não pode mal haver pera comigo,
de que eu já me não possa bem livrar,
senão do que me ordena Amor imigo.

Luís Vaz de Camões

No mundo quis um tempo que se achasse

No mundo quis um tempo que se achasse
O bem por acerto ou sorte vinha;
E, por exprimentar que dita tinha,
Quis que a Fortuna em mim se exprimentasse.

Mas por que meu destino me mostrasse
Que nem ter esperanças me convinha,
Nunca nesta tão longa vida minha
Cousa me deixou ver que desejasse.

Mudando andei costume, terra e estado,
Por ver se se mudava a sorte dura;
A vida pus nas mãos de um leve lenho.

Mas – segundo o que o Céu me tem mostrado -
Já sei que deste meu buscar ventura,
Achado tenho já que não a tenho.

Luís Vaz de Camões

No mundo, poucos anos e cansados

No mundo, poucos anos e cansados
vivi, cheios de vil miséria dura;
foi-me tão cedo a luz do dia escura
que não vi cinco lustros acabados.

Corri terras e mares apartados,
buscando à vida algum remédio ou cura;
mas aquilo que, enfim, não quer ventura,
não o alcançam trabalhos arriscados.

Criou-me Portugal na verde e cara
pátria minha Alenquer; mas ar corruto,
que neste meu terreno vaso tinha,

me fez manjar de peixes em ti, bruto
mar, que bates na Abássia fera e avara,
tão longe da ditosa pátria minha!

Luís Vaz de Camões

No tempo que de Amor viver soía

No tempo que de Amor viver soía,
Nem sempre andava ao remo ferrolhado;
Antes agora livre, agora atado,
Em várias flamas variamente ardia.

Que ardesse num só fogo, não queria
O Céu, porque tivesse exprimentado
Que nem mudar as causas ao cuidado
Mudança na ventura me faria.

E se algum pouco tempo andava isento,
Foi como quem co peso descansou,
Por tornar a cansar com mais alento.

Louvado seja Amor em meu tormento,
Pois para passatempo seu tomou
Este meu tão cansado sofrimento!

Luís Vaz de Camões

Nos braços de um Silvano adormecendo

Nos braços de um Silvano adormecendo
se estava aquela Ninfa que eu adoro,
pagando com a boca o doce foro,
com que os meus olhos foi escurecendo.

Ó bela Vénus! porque estás sofrendo
que a maior fermosura do teu coro
em um poder tão vil perca o decoro
que o mérito maior lhe está devendo?

Eu levarei daqui por pressuposto
desta nova estranheza, que fizeste,
que em ti não pode haver cousa segura.

Que, pois o claro lume, o belo rosto
àquele monstro tão disforme deste,
não creio que haja Amor, senão Ventura.

Luís Vaz de Camões

Num bosque que das Ninfas se habitava

Num bosque que das Ninfas se habitava,
Sílvia, Ninfa linda, andava um dia;
subida nüa árvore sombria,
as amarelas flores apanhava.

Cupido, que ali sempre costumava
a vir passar a sesta à sombra fria,
num ramo o arco e setas que trazia,
antes que adormecesse, pendurava.

A Ninfa, como idóneo tempo vira
para tamanha empresa, não dilata,
mas com as armas foge ao Moço esquivo.

As setas traz nos olhos, com que tira.
Ó pastores! fugi, que a todos mata,
senão a mim, que de matar-me vivo.

Luís Vaz de Camões

Num jardim adornado de verdura

Num jardim adornado de verdura,
a que esmaltam por cima várias flores,
entrou um dia a deusa dos amores,
com a deusa da caça e da espessura.

Diana tomou logo üa rosa pura,
Vénus um roxo lírio, dos milhores;
mas excediam muito às outras flores
as violas, na graça e fermosura.

Perguntam a Cupido, que ali estava,
qual daquelas três flores tomaria,
por mais suave, pura e mais fermosa.

Sorrindo-se, o Minino lhe tornava:
«Todas fermosas são; mas eu queria
viol' antes que lírio nem que rosa».

Luís Vaz de Camões

Num tão alto lugar, de tanto preço

Num tão alto lugar, de tanto preço,
este meu pensamento posto vejo,
que desfalece nele inda o desejo,
vendo quanto por mim o desmereço.

Quando esta tal baixeza em mim conheço,
acho que cuidar nele é grão despejo,
e que morrer por ele me é sobejo
e mor bem para mim do que mereço.

O mais que natural merecimento
de quem me causa um mal tão duro e forte
o faz que vá crecendo de hora em hora.

Mas eu não deixarei meu pensamento,
porque, inda que este mal me causa a morte,
un bel morir tutta la vita onora.

Luís Vaz de Camões

O céu, a terra, o vento sossegado

O céu, a terra, o vento sossegado...
As ondas, que se estendem pela areia...
Os peixes, que no mar o sono enfreia...
O nocturno silêncio repousado...

O pescador Aónio, que, deitado
Onde co vento a água se meneia,
Chorando, o nome amado em vão nomeia,
Que não pode ser mais que nomeado:

— Ondas – dezia – antes que Amor me mate,
Tornai-me a minha Ninfa, que tão cedo
Me fizestes à morte estar sujeita.

Ninguém lhe fala; o mar de longe bate;
Move-se brandamente o arvoredo;
Leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita.

Luís Vaz de Camões

O cisne, quando sente ser chegada

O cisne, quando sente ser chegada
A hora que põe termo à sua vida,
Música com voz alta e bem subida
Levanta pola praia inabitada.

Deseja ter a vida prolongada,
Chorando do viver a despedida;
Com grande saudade da partida,
Celebra o triste fim desta jornada.

Assi, Senhora minha, quando via
O triste fim que davam os meus amores,
Estando posto já no extremo fio,

Com mais suave canto e harmonia
Descantei polos vossos desfavores,
La vuestra falsa fe y el amor mío.

Luís Vaz de Camões

O culto divinal se celebrava

O culto divinal se celebrava
no templo donde toda a criatura
louva o Feitor divino, que a feitura
com seu sagrado sangue restaurava.

Ali Amor, que o tempo me aguardava
onde a vontade tinha mais segura,
nüa celeste e angélica figura
a vista da razão me salteava.

Eu, crendo que o lugar me defendia,
e meu livre costume não sabendo
que nenhum confiado lhe fugia,

deixei-me cativar; mas já que entendo,
Senhora, que por vosso me queria,
do tempo que fui livre me arrependo.

Luís Vaz de Camões

O dia em que eu nasci, morra e pereça

O dia em que eu nasci, morra e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar,
Não torne mais ao mundo e, se tornar,
Eclipse nesse passo o sol padeça.

A luz lhe falte, o sol se lhe escureça,
Mostre o mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!

Luís Vaz de Camões

O filho de Latona esclarecido

O filho de Latona esclarecido,
que com seu raio alegra a humana gente,
o hórrido Piton, brava serpente,
matou, sendo das gentes tão temido.

Feriu com arco, e de arco foi ferido
com ponta aguda de ouro reluzente;
nas Tessálicas praias, docemente,
pela Ninfa Peneia andou perdido.

Não lhe pôde valer, para seu dano,
ciência, diligências, nem respeito
de ser alto, celeste e soberano.

Se este nunca alcançou nem um engano
de quem era tão pouco em seu respeito,
eu que espero de um ser que é mais que humano?

Luís Vaz de Camões

Ó gloriosa cruz, ó vitorioso

Ó gloriosa cruz, ó vitorioso
troféu, de despojos rodeado,
ó sinal escolhido e ordenado
para remédio tão maravilhoso;

ó fonte viva de licor sagrado,
em ti nosso mal todo foi curado!
Em ti o Senhor, que forte era chamado,
quis merecer o nome de piedoso.

Em ti se acabou o tempo da vingança;
em ti misericórdia assim floreça
como despois do inverno a primavera.

Todo o imigo ante ti desapareça.
Tu pudeste fazer tanta mudança
em quem nunca deixou de ser quem era.

Luís Vaz de Camões

O raio cristalino se estendia

O raio cristalino se estendia
pelo mundo, da Aurora marchetada,
quando Nise, pastora delicada,
donde a vida deixava, se partia.

Dos olhos, com que o Sol escurecia
levando a vista em lágrimas banhada,
de si, do Fado e Tempo magoada,
pondo os olhos no Céu, assi dezia:

«Nasce, sereno Sol, puro e luzente;
resplandece, fermosa e roxa Aurora,
qualquer alma alegrando descontente;

que a minha, sabe tu que, desde agora,
jamais na vida a podes ver contente,
nem tão triste nenhüa outra pastora».

Luís Vaz de Camões

O tempo acaba o ano, o mês e a hora

O tempo acaba o ano, o mês e a hora,
A força, a arte, a manha, a fortaleza;
O tempo acaba a fama e a riqueza,
O tempo o mesmo tempo de si chora.

O tempo busca e acaba onde mora
Qualquer ingratidão, qualquer dureza;
Mas não pode acabar minha tristeza,
Enquanto não quiserdes vós, Senhora.

O tempo o claro dia torna escuro,
E o mais ledo prazer em choro triste;
O tempo, a tempestade em grã bonança.

Mas de abrandar o tempo estou seguro
O peito de diamante, onde consiste
A pena e o prazer desta esperança.

Luís Vaz de Camões

Oh! quão caro me custa o entender-te

Oh! quão caro me custa o entender-te,
molesto Amor. que, só por alcançar-te,
de dor em dor me tens trazido a parte
onde em ti ódio e ira se converte!

Cuidei que, para em tudo conhecer-te,
me não faltasse experiência e arte;
agora vejo n'alma acrescentar-te
aquilo que era causa de perder-te.

Estavas tão secreto no meu peito
que eu mesmo, que te tinha, não sabia
que me senhoreavas deste jeito.

Descobriste-te agora; e foi por via
que teu descobrimento e meu defeito,
um me envergonha e outro me injuria.

Luís Vaz de Camões

Oh, como se me alonga, de ano em ano

Oh, como se me alonga, de ano em ano,
A peregrinação cansada minha!
Como se encurta, e como ao fim caminha
Este meu breve e vão discurso humano!

Vai-se gastando a idade e cresce o dano;
Perde-se-me um remédio, que inda tinha;
Se por experiência se adivinha,
Qualquer grande esperança é grande engano.

Corro após este bem que não se alcança;
No meio do caminho me falece,
Mil vezes caio, e perco a confiança.

Quando ele foge, eu tardo; e, na tardança,
Se os olhos ergo a ver se inda parece,
Da vista se me perde e da esperança.

Luís Vaz de Camões

Olhos fermosos, em quem quis Natura

Olhos fermosos, em quem quis Natura
mostrar do seu poder altos sinais,
se quiserdes saber quanto possais,
vede-me a mim, que sou vossa feitura.

Pintada em mim se vê vossa figura;
no que eu padeço retratada estais;
que, se eu passo tormentos desiguais,
muito mais pode vossa fermosura.

De mim não quero mais que o meu desejo:
ser vosso; e só de ser vosso me arreio,
por que o vosso penhor em mim se assele.

Não me lembro de mim, quando vos vejo,
nem do mundo; e não erro, porque creio
que, em lembrar-me de vós, cumpro com ele.

Luís Vaz de Camões

Ondados fios de ouro reluzente

Ondados fios de ouro reluzente,
Que agora da mão bela recolhidos,
Agora sobre as rosas estendidos
Fazeis que sua graça se acrecente;

Olhos, que vos moveis tão docemente,
Em mil divinos raios encendidos,
Se de cá me levais alma e sentidos,
Que fora, se de vós não fora ausente?

Honesto riso, que entre a mor fineza
De perlas e corais nace e parece,
Se n'alma em doces ecos não o ouvisse!

Se imaginando só tanta beleza,
De si, em nova glória, a alma se esquece,
Que será quando a vir? Ah! quem a visse!

Luís Vaz de Camões

Onde mereci eu tal pensamento

Onde mereci eu tal pensamento,
nunca de ser humano merecido?
Onde mereci eu ficar vencido
de quem tanto me honrou co vencimento?

Em glória se converte o meu tormento,
quando vendo-me estou tão bem perdido;
pois não foi tanto mal ser atrevido,
como foi glória o mesmo atrevimento.

Vivo, Senhora, só de contemplar-vos;
e pois esta alma tenho tão rendida,
em lágrimas desfeito acabarei.

Porque não me farão deixar de amar-vos
receios de perder por vós a vida,
que por vós vezes mil a perderei.

Luís Vaz de Camões

Orfeu enamorado que tañía

Orfeu enamorado que tañía
por la perdida ninfa, que buscaba,
en el Orco implacable donde estaba,
con la arpa y con la voz la enternecía.

La rueda de Ixión no se movia,
ningún atormentado se quejaba,
las penas de los otros ablandaba,
y todas las de todos él sentía.

El son pudo obligar de tal manera,
que, en dulce galardón de lo cantado,
los infernales reyes, condolidos,

le mandaron volver su compañera,
y volvióla á perder el desdichado,
con que fueron entrambos los perdidos.

Luís Vaz de Camões

Ornou mui raro esforço ao grande Atlante

Ornou mui raro esforço ao grande Atlante
com que a celeste máquina sustenta;
honrou seu alto engenho esse, que intenta
Grécia do quarto céu levá-lo avante.

Coroou já o Amor o firme amante
Orfeu, firme na paz e na tormenta;
aspirou a ventura em tudo isenta
a César, de quem foi um tempo amante.

Tu exaltaste, ó Fama, a glória alta
de Hércules sobre o monte em que resides;
mas Castro, em quem o Céu seus dões derrama,

mais orna, honra, coroa, aspira, exalta
que Atlante, Homero, Orfeu, César e Alcides,
Esforço, Engenho, Amor, Ventura e Fama.

Luís Vaz de Camões

Os reinos e os impérios poderosos

Os reinos e os impérios poderosos,
que em grandeza no mundo mais creceram,
ou por valor de esforço floreceram
ou por varões nas letras espantosos.

Teve Grécia Temístocles famosos;
os Cipiões a Roma engrandeceram;
doze pares a França glória deram;
Cides a Espanha, e Laras belicosos.

Ao nosso Portugal (que agora vemos
tão diferente de seu ser primeiro),
os vossos deram honra e liberdade.

E em vós, grão sucessor e novo herdeiro
do braganção estado, há mil extremos
iguais ao sangue, e mores que a idade.

Luís Vaz de Camões

Os vestidos Elisa revolvia

Os vestidos Elisa revolvia
que lhe Eneias deixara por memória:
doces despojos da passada glória,
doces, quando seu Fado o consentia.

Entre eles a fermosa espada via
que instrumento foi da triste história;
e, como quem de si tinha a vitória,
falando só com ela, assi dezia:

«Fermosa e nova espada, se ficaste
só para executares os enganos
de quem te quis deixar, em minha vida,

sabe que tu comigo te enganaste;
que, para me tirar de tantos danos,
sobeja-me a tristeza da partida».

Luís Vaz de Camões

Para se namorar do que criou

Para se namorar do que criou
te fez Deus, santa Fénix, Virgem pura.
Vede que tal seria esta feitura
que a fez quem para si só a guardou.

No seu santo conceito te formou
primeiro que a primeira criatura,
para que única fosse a compostura
que de tão longo tempo se estudou.

Não sei se direi nisto quanto baste
para exprimir as santas qualidades
que quis criar em ti quem tu criaste.

És filha, mãe e esposa. E se alcançaste,
üa só, três tão altas dignidades,
foi porque a três e um só tanto agradaste.

Luís Vaz de Camões

Passo por meus trabalhos tão isento

Passo por meus trabalhos tão isento
de sentimento grande nem pequeno
que, só pola vontade com que peno,
me fica Amor devendo mais tormento.

Mas vai-me Amor matando tanto a tento,
temperando a triaga co veneno,
que do penar a ordem desordeno,
porque não mo consente o sofrimento.

Porém, se esta fineza o Amor sente
e pagar-me meu mal com mal pretende,
torna-me com prazer como ao sol neve.

Mas se me vê cos males tão contente,
faz-se avaro da pena, porque entende
que, quanto mais me paga, mais me deve.

Luís Vaz de Camões

Pede o desejo, Dama, que vos veja

Pede o desejo, Dama, que vos veja;
Não entende o que pede; está enganado.
É este amor tão fino e tão delgado,
Que, quem o tem, não sabe o que deseja.

Não há cousa, a qual natural seja,
Que não queira perpétuo o seu estado;
Não quer logo o desejo o desejado,
Por que não falte nunca onde sobeja.

Mas este puro afeito em mim se dana;
Que, como a grave pedra tem por arte
O centro desejar da Natureza,

Assi o pensamento, pela parte
Que vai tomar de mim, terrestre, humana,
Foi, Senhora, pedir esta baixeza.

Luís Vaz de Camões

Pelos extremos raros que mostrou

Pelos extremos raros que mostrou
em saber Palas, Vénus em fermosa,
Diana em casta, Juno em animosa,
África, Europa e Ásia as adorou.

Aquele saber grande que ajuntou
espírito e corpo em liga generosa,
esta mundana máquina lustrosa,
de só quatro Elementos, fabricou.

Mas mor milagre fez a Natureza
em vós, Senhoras, pondo em cada üa
o que por todas quatro repartiu.

A vós seu resplandor deu Sol e Lüa,
a vós com viva luz, graça e pureza,
Ar, Fogo Terra e Água vos serviu.

Luís Vaz de Camões

Pensamentos, que agora novamente

Pensamentos, que agora novamente
cuidados vãos em mim ressuscitais,
dizei-me: ainda não vos contentais
de terdes quem vos tem tão descontente?

Que fantasia é esta, que presente
cada hora ante meus olhos me mostrais?
Com sonhos e com sombras atentais
quem nem por sonhos pode ser contente?

Vejo-vos, pensamentos, alterados;
e não quereis, de esquivos, declarar-me
que é isto que vos traz tão enleados?

Não me negueis, se andais para negar-me;
que, se contra mim estais alevantados,
eu vos ajudarei mesmo a matar-me.

Luís Vaz de Camões

Pois meus olhos não cansam de chorar

Pois meus olhos não cansam de chorar
tristezas, que não cansam de cansar-me;
pois não abranda o fogo, em que abrasar-me
pôde quem eu jamais pude abrandar;

não canse o cego Amor de me guiar
a parte donde não saiba tornar-me;
nem deixe o mundo todo de escutar-me,
enquanto me a voz fraca não deixar.

E se em montes, rios, ou em vales,
piedade mora, ou dentro mora Amor
em feras, aves, prantas, pedras, águas,

ouçam a longa história de meus males
e curem sua dor com minha dor;
que grandes mágoas podem curar mágoas.

Luís Vaz de Camões

Por cima destas águas, forte e firme

Por cima destas águas, forte e firme,
irei por onde as sortes ordenaram,
pois por cima de quantas me choraram
aqueles claros olhos pude vir-me.

Já chegado era o fim de despedir-me,
já mil impedimentos se acabaram,
quando rios de amor se atravessaram
a me impedir o passo de partir-me.

Passei-os eu com ânimo obstinado,
com que a morte forçada e gloriosa
faz o vencido já desesperado.

Em que figura ou gesto desusado
pode já fazer medo a morte irosa,
a quem tem a seus pés rendido e atado?

Luís Vaz de Camões

Por sua Ninfa, Céfalo deixava

Por sua Ninfa, Céfalo deixava
Aurora, que por ele se perdia;
posto que dá princípio ao claro dia,
posto que as roxas flores imitava.

Ele, que a bela Prócris tanto amava
que só por ela tudo enjeitaria,
deseja de atentar se lhe acharia
tão firme fé como nele achava.

Mudado o trajo, tece o duro engano;
outro se finge, preço põe diante;
quebra-se a fé mudável, e consente.

Ó engenho sutil para seu dano!
Vede que manhas busca um cego amante
para que sempre seja descontente!

Luís Vaz de Camões

Porque a tamanhas penas se oferece

«Porque a tamanhas penas se oferece,
pelo pecado alheio e erro insano,
o trino Deus?» – «Porque o sujeito humano
não pode co castigo que merece».

«Quem padecerá as penas que padece?
Quem sofrerá desonra, morte e dano?»
«Ninguém, senão se for o soberano
que reina, e servos manda, e obedece».

Foi a força do homem tão pequena
que não pôde suster tanta aspereza,
pois não susteve a lei que Deus ordena.

Sofre-a aquela imensa Fortaleza,
por puro amor; que a humanal fraqueza
foi para o erro, e não já para a pena.

Luís Vaz de Camões

Porque quereis, Senhora, que ofereça

Porque quereis, Senhora, que ofereça
a vida a tanto mal como padeço?
Se vos nace do pouco que mereço,
bem por nacer está quem vos mereça.

Sabei que, enfim, por muito que vos peça,
que posso merecer quanto vos peço;
que não consente Amor que em baixo preço
tão alto pensamento se conheça.

Assi que a paga igual de minhas dores
com nada se restaura; mas deveis-ma,
por ser capaz de tantos disfavores.

E se o valor de vossos servidores
houver de ser igual convosco mesma,
vós só convosco mesma andai d' amores.

Luís Vaz de Camões

Posto me tem fortuna em tal estado

Posto me tem fortuna em tal estado,
E tanto a seus pés me tem rendido!
Não tenho que perder já, de perdido,
Não tenho que mudar já, de mudado.

Todo o bem para mim é acabado;
Daqui dou o viver já por vivido;
Que, aonde o mal é tão conhecido,
Também o viver mais será escusado.

Se me basta querer, a morte quero,
Que bem outra esperança não convém,
E curarei um mal com outro mal.

E pois do bem tão pouco bem espero,
Já que o mal este só remédio tem,
Não me culpem em querer remédio tal.

Luís Vaz de Camões

Presença bela, angélica figura

Presença bela, angélica figura,
Em quem, quanto o Céu tinha, nos tem dado;
Gesto alegre, de rosas semeado,
Entre as quais se está rindo a Fermosura;

Olhos, onde tem feito tal mistura
Em cristal branco e preto marchetado,
Que vemos já no verde delicado
Não esperança, mas enveja escura;

Brandura, aviso e graça que, aumentando
A natural beleza c'um desprezo
Com que, mais desprezada, mais se aumenta;

São as prisões de um coração que, preso,
Seu mal ao som dos ferros vai cantando,
Como faz a sereia na tormenta.

Luís Vaz de Camões

Pues lágrimas tratáis, mis ojos tristes

Pues lágrimas tratáis, mis ojos tristes,
y en lágrimas pasáis la noche y día,
mirad si es llanto este que os envía
aquella por quien vos tantas vertistes.

Sentid, mis ojos, bien esta que vistes,
y si ella lo es, oh gran ventura mía!
por muy bien empleadas las habría
mil cuentos que por esta sola distes.

Mas una cosa mucho deseada,
aunque se vea cierta, no es creída;
cuanto más esta, que me es enviada.

Pero digo que aunque sea fingida,
que basta que por lágrima sea dada,
por que sea por lágrima tenida.

Luís Vaz de Camões

Qual tem a borboleta por costume

Qual tem a borboleta por costume,
que, enlevada na luz da acesa vela,
dando vai voltas mil, até que nela
se queima agora, agora se consume;

tal eu correndo vou ao vivo lume
desses olhos gentis, Aónia bela;
e abraso-me, por mais que com cautela
livrar-me a parte racional presume.

Conheço o muito a que se atreve a vista,
o quanto se levanta o pensamento,
o como vou morrendo claramente.

Porém, não quer Amor que lhe resista,
nem a minha alma o quer; que em tal tormento,
qual em glória maior, está contente.

Luís Vaz de Camões

Quando a suprema dor muito me aperta

Quando a suprema dor muito me aperta,
se digo que desejo esquecimento,
é força que se faz ao pensamento,
de que a vontade livre desconcerta.

Assi, de erro tão grave me desperta
a luz do bem regido entendimento,
que mostra ser engano ou fingimento
dizer que em tal descanso mais se acerta.

Porque essa própria imagem, que na mente
me representa o bem de que careço,
faz-mo de um certo modo ser presente.

Ditosa é logo a pena que padeço,
pois que da causa dela em mim se sente
um bem que, inda sem ver-vos, reconheço.

Luís Vaz de Camões

Quando cuido no tempo que, contente

Quando cuido no tempo que, contente,
Vi pérolas, neve, rosa e ouro,
Como quem vê por sonhos um tesouro,
Parece tenho tudo aqui presente.

Mas tanto que se passa este acidente,
E vejo o quão distante de vós mouro,
Temo quanto imagino por agouro,
Por que de imaginar também me ausente.

Já foram dias em que por ventura
Vos vi, Senhora, se assi dizendo posso,
Co coração seguro estar, sem medo;

Agora, em tanto mal não me assegura
A própria fantasia e nojo vosso:
Eu não posso entender este segredo!

Luís Vaz de Camões

Quando da bela vista e doce riso

Quando da bela vista e doce riso
Tomando estão meus olhos mantimento,
Tão enlevado sinto o pensamento
Que me faz ver na terra o Paraíso.

Tanto do bem humano estou diviso,
Que qualquer outro bem julgo por vento;
Assi que em caso tal, segundo sento,
Assaz de pouco faz quem perde o siso.

Em vos louvar, Senhora, não me fundo,
Porque, quem vossas cousas claro sente,
Sentirá que não pode merecê-las.

Que de tanta estranheza sois ao mundo,
Que não é de estranhar, Dama excelente,
Que quem vos fez fizesse céu e estrelas.

Luíz Vaz de Camões

Quando de minhas mágoas a comprida

Quando de minhas mágoas a comprida
Maginação os olhos me adormece,
Em sonhos aquela alma me aparece
Que pera mim foi sonho nesta vida.

Lá núa soidade, onde estendida
A vista pelo campo desfalece,
Corro para ela; e ela então parece
Que mais de mim se alonga, compelida.

Brado: "Não me fujais, sombra benina!"
Ela, os olhos em mim cum brando pejo,
Como quem diz que já não pode ser,

Torna a fugir-me: e eu, gritando: "Dina..."
Antes que diga mene, acordo e vejo
Que nem um breve engano e posso ter.

Luís Vaz de Camões

Quando o Sol encoberto vai mostrando

Quando o Sol encoberto vai mostrando
Ao mundo a luz quieta e duvidosa
Ao longo de úa praia deleitosa,
Vou na minha inimiga imaginando.

Aqui a vi os cabelos concertando;
Ali, co a mão na face, tão fermosa;
Aqui falando alegre, ali cuidosa;
Agora estando queda, agora andando.

Aqui esteve sentada, ali me viu,
Erguendo aqueles olhos tão isentos;
Aqui movida um pouco, ali segura;

Aqui se entristeceu, ali se riu...
Enfim, nestes cansados pensamentos,
Passo esta vida vã, que sempre dura.

Luís Vaz de Camões

Quando se vir com água o fogo arder

Quando se vir com água o fogo arder
e misturar co dia a noite escura,
e a terra se vir naquela altura
em que se vêem os Céus prevalecer;

O Amor por Razão mandado ser,
e a todos ser igual nossa ventura,
com tal mudança, vossa fermosura
então a poderei deixar de ver.

Porém não sendo vista esta mudança
no mundo (como claro está não ver-se),
não se espere de mim deixar de ver-vos.

Que basta estar em vós minha esperança,
o ganho de minh' alma e o perder-se,
para não deixar nunca de querer-vos.

Luís Vaz de Camões

Quando vejo que meu destino ordena

Quando vejo que meu destino ordena
que, por me exprimentar, de vós me aparte,
deixando de meu bem tão grande parte
que a mesma culpa fica grave pena;

o duro desfavor que me condena,
quando pela memória se reparte,
endurece os sentidos de tal arte
que a dor da ausência fica mais pequena.

Pois como pode ser que na mudança
daquilo que mais quero estê tão fora
de me não apartar também da vida?

Eu refrearei tão áspera esquivança;
porque mais sentirei partir, Senhora,
sem sentir muito a pena da partida.

Luís Vaz de Camões

Quando, Senhora, quis Amor que amasse

Quando, Senhora, quis Amor que amasse
essa grã perfeição e gentileza,
logo deu por sentença que a crueza
em vosso peito amor acrescentasse.

Determinou que nada me apartasse:
nem desfavor cruel, nem aspereza;
mas que em minha raríssima firmeza
vossa isenção cruel se executasse.

E pois tendes aqui oferecida
esta alma vossa a vosso sacrifício,
acabai de fartar vossa vontade.

Não lhe alargueis, Senhora, mais a vida;
acabará morrendo em seu ofício,
sua fé defendendo e lealdade.

Luís Vaz de Camões

Quanta incerta esperança, quanto engano!

Quanta incerta esperança, quanto engano!
Quanto viver de falsos pensamentos,
pois todos vão fazer seus fundamentos
só no mesmo em que está seu próprio dano!

Na incerta vida estribam de um humano;
dão crédito a palavras que são ventos;
choram depois as horas e os momentos
que riram com mais gosto em todo o ano.

Não haja em aparências confianças;
entende que o viver é de emprestado;
que o de que vive o mundo são mudanças.

Mudai, pois, o sentido e o cuidado,
somente amando aquelas esperanças
que duram pera sempre com o amado.

Luís Vaz de Camões

Quantas vezes do fuso se esquecia

Quantas vezes do fuso se esquecia
Daliana, banhando o lindo seio,
tantas vezes de um áspero receio
salteado, Laurénio a cor perdia.

Ela, que a Sílvio mais que a si queria,
para podê-lo ver não tinha meio.
Ora, como curar o mal alheio
quem o seu mal tão mal curar sabia?

Ele, que viu tão clara esta verdade,
com soluços dezia (que a espessura
comovia, de mágoa, a piedade):

«Como pode a desordem da Natura
fazer tão diferentes na vontade
a quem fez tão conformes na ventura?»

Luís Vaz de Camões

Que gritos são os que ouço? – De tristeza

«Que gritos são os que ouço?» – «De tristeza».
«Quem é a causa dela?» – «A morte só».
«Tão grande mal nos fez?» – «Quebrou um nó».
«Que nó? A quem atava?» – «A gentileza».

«Era mais que fermosa?» – «Era de Alteza».
«Desfez-se em ouro?» – «Não, em terra, em pó».
«Também é como nós?» – «Também, mas só».
«Que gemes?» – «De perder a tal Princesa».

«Não vês que tudo é mundo?» – «Bem o entendo».
«Pois não te agastes». – «Não mo sofre a alma».
«Que te consola aqui?» – «Na vida vê-la».

«Tão boa foi?» – «O reino o está dizendo».
«Pois sabe que, se cá levou a palma,
que lá terá também a palma dela».

Luís Vaz de Camões

Que levas, cruel morte ? Um dia

«Que levas, cruel Morte?» «Um claro dia».
«A que horas o tomaste?» «Amanhecendo».
«Entendes o que levas?» «Não o entendo».
«Pois quem to faz levar?» «Quem o entendia».

«Seu corpo quem o goza?» «A terra fria.»
«Como ficou sua luz?» «Anoitecendo».
«Lusitânia que diz?» «Fica dizendo:
Enfim, não mereci Dona Maria».

«Mataste quem a viu?» «Já morto estava».
«Que diz o cru Amor?» «Falar não ousa.»
«E quem o faz calar?» «Minha vontade».

«Na corte que ficou?» «Saudade brava».
«Que fica lá que ver?» «Nenhüa cousa;
mas fica que chorar sua beldade».

Luís Vaz de Camões

Que me quereis, perpétuas saudades?

Que me quereis, perpétuas saudades?
Com que esperança ainda me enganais?
Que o tempo que se vai não torna mais
E, se torna, não tornam as idades.

Razão é já, ó anos, que vos vades,
Porque estes tão ligeiros que passais,
Nem todos pera um gosto são iguais,
Nem sempre são conformes as vontades.

Aquilo a que já quis é tão mudado
Que quase é outra cousa; porque os dias
Têm o primeiro gosto já danado.

Esperanças de novas alegrias
Não mas deixa a Fortuna e o Tempo errado,
Que do contentamento são espias.

Luís Vaz de Camões

Que modo tão sutil da Natureza

Que modo tão sutil da Natureza,
para fugir ao mundo e seus enganos,
permite que se esconda, em tenros anos,
debaixo de um burel tanta beleza!

Mas esconder-se não pode aquela alteza
e gravidade de olhos soberanos,
a cujo resplandor entre os humanos
resistência não sinto, ou fortaleza.

Quem quer livre ficar de dor e pena,
vendo-a ou trazendo-a na memória,
na mesma razão sua se condena.

Porque quem mereceu ver tanta glória,
cativo há-de ficar; que Amor ordena
que de juro tenha ela esta vitória.

Luís Vaz de Camões

Que pode já fazer minha ventura

Que pode já fazer minha ventura
que seja para meu contentamento?
Ou como fazer devo fundamento
de cousa que o não tem, nem é segura?

Que pena pode ser tão certa e dura
que possa ser maior que meu tormento?
Ou como receará meu pensamento
os males, se com eles mais se apura?

Como quem se costuma de pequeno
com peçonha criar por mão ciente,
da qual o uso já o tem seguro;

assi de acostumado co veneno,
o uso de sofrer meu mal presente
me faz não sentir já nada o futuro.

Luís Vaz de Camões

Que poderei do mundo já querer

Que poderei do mundo já querer,
que naquilo em que pus tamanho amor,
não vi senão desgosto e desamor
e morte, enfim, que mais não pode ser?

Pois vida me não farta de viver,
pois já sei que não mata grande dor,
se cousa há que mágoa dê maior,
eu a verei, que tudo posso ver.

A morte, a meu pesar, me assegurou
de quanto mal me vinha; já perdi
o que perder o medo me ensinou.

Na vida desamor somente vi,
na morte a grande dor que me ficou:
parece que para isto só nasci!

Luís Vaz de Camões

Quem fosse acompanhando juntamente

Quem fosse acompanhando juntamente
por esses verdes campos a avezinha
que, despois de perder um bem que tinha,
não sabe mais que cousa é ser contente!

Quem fosse, apartando-se da gente:
ela, por companheira e por vizinha,
me ajudasse a chorar a pena minha;
eu a ela o pesar que tanto sente!

Ditosa ave que, ao menos, se a Natureza
a seu primeiro bem não dá segundo,
dá-lhe o ser triste a seu contentamento.

Mas triste quem de longe quis Ventura
que, para respirar, lhe falte o vento;
e para tudo, enfim, lhe falte o mundo!

Luís Vaz de Camões

Quem pudera julgar de vós, Senhora

Quem pudera julgar de vós, Senhora,
que com tal fé podia assi perder-vos,
e vir eu por amor a aborrecer-vos?
Que hei-de fazer sem vós somente üa hora?

Deixastes quem vos ama e vos adora;
tomastes quem quiçá não sabe ver-vos.
Eu fui o que não soube merecer-vos,
e tudo entendo e choro, triste, agora.

Nunca soube entender vossa vontade,
nem a minha mostrar-vos verdadeira,
inda que clara estava esta verdade.

Em mim viverá ela sempre inteira;
e, se pera perder já a vida é tarde,
a morte não fará que vos não queira.

Luís Vaz de Camões

Quem quiser ver d' Amor üa excelência

Quem quiser ver d' Amor üa excelência
onde sua fineza mais se apura,
atente onde me põe minha ventura,
por ter de minha fé experiência.

Onde lembranças mata a longa ausência,
em temeroso mar, em guerra dura,
ali a saudade está segura,
quando mor risco corre a paciência.

Mas ponha-me Fortuna e o duro Fado
em nojo, morte, dano e perdição,
ou em sublime e próspera ventura;

ponha-me, enfim, em baixo ou alto estado;
que até na dura morte me acharão
na língua o nome, n'alma a vista pura.

Luís Vaz de Camões

Quem vê, Senhora, claro e manifesto

Quem vê, Senhora, claro e manifesto
o lindo ser de vossos olhos belos,
se não perder a vista só em vê-los,
já não paga o que deve a vosso gesto.

Este me parecia preço honesto;
mas eu, por de vantagem merecê-los,
dei mais a vida e alma por querê-los,
donde já me não fica mais de resto.

Assi que a vida e alma e esperança
e tudo quanto tenho, tudo é vosso,
e o proveito disso eu só o levo.

Porque é tamanha bem-aventurança
o dar-vos quanto tenho e quanto posso,
que, quanto mais vos pago, mais vos devo.

Luís Vaz de Camões

Quem vos levou de mi, saudoso estado

Quem vos levou de mi, saudoso estado,
que tanta sem-razão comigo usastes?
Quem foi? Por quem tão presto me negastes,
esquecido de todo o bem passado?

Trocastes-me um descanso em um cuidado
tão duro, tão cruel, qual me ordenastes;
a fé, que tínheis dado, me negastes,
quando mais nela estava confiado.

Vivia sem receio deste mal;
Fortuna, que tem tudo a sua mercê,
amor com desamor me revolveu.

Bem sei que neste caso nada val,
que, quem naceu chorando, justo é
que pague com chorar o que perdeu.

Luís Vaz de Camões

Razão é já que minha confiança

Razão é já que minha confiança
se deça de üa falsa opinião;
mas Amor não se rege por razão:
não posso perder logo a esperança.

A vida, si; que üa áspera mudança
não deixa viver tanto um coração.
E eu na morte tenho a salvação,
si; mas quem a deseja não a alcança.

Forçado é logo que eu espere e viva.
Ah! dura lei de Amor, que não consente
quietação nüa alma que é cativa!

Se hei-de viver, enfim, forçadamente,
para que quero a glória fugitiva
de üa esperança vã que me atormente?

Luís Vaz de Camões

De tão divino acento e voz humana

De tão divino acento e voz humana,
de tão doces palavras peregrinas,
bem sei que minhas obras não são dinas,
que o rudo engenho meu me desengana.

Mas de vossos escritos corre e mana
licor que vence as águas cabalinas;
e convosco do Tejo as flores finas
farão enveja à cópia Mantuana.

E pois a vós de si não sendo avaras,
as filhas de Mnemósine fermosa
partes dadas vos tem, ao mundo caras;

a minha Musa e a vossa tão famosa,
ambas posso chamar ao mundo raras:
a vossa de alta, a minha de envejosa.

Luís Vaz de Camões
Resposta do Autor a um soneto, pelos mesmos consoantes

quinta-feira, 27 de março de 2008

Ditosas almas, que ambas juntamente

Ditosas almas, que ambas juntamente
ao céu de Vénus e de Amor voastes,
onde um bem que tão breve cá lograstes
estais logrando agora eternamente.

Aquele estado vosso tão contente,
que só por durar pouco triste achastes,
por outro mais contente já o trocastes,
onde sem sobressalto o bem se sente.

Triste de quem cá vive tão cercado,
na amorosa fineza, de um tormento
que a glória lhe perturba mais crescida!

Triste, pois me não vale o sofrimento,
e Amor, pera mais dano, me tem dado
pera tão duro mal, tão larga vida!

Luís Vaz de Camões

Diversos dões reparte o Céu benino

Diversos dões reparte o Céu benino,
e quer que cada üa um só possua.
Assi, ornou de casto peito a Lüa,
ornamento do assento cristalino;

de graça, a Mãe fermosa do Minino,
que nessa vista tem perdido a sua;
Palas de discrição, que imite a tua;
do valor, Juno, só de império dino.

Mas junto agora o mesmo Céu derrama
em ti o mais que tinha, e foi o menos,
em respeito do Autor da natureza;

que a seu pesar te dão, fermosa Dama,
Diana honestidade, e graça Vénus,
Palas o aviso seu, Juno a nobreza.

Luís Vaz de Camões

Dizei, Senhora, da Beleza ideia

Dizei, Senhora, da Beleza ideia:
Para fazerdes esse áureo crino,
Onde fostes buscar esse ouro fino?
De que escondida mina ou de que veia?

Dos vossos olhos essa luz febeia,
Esse respeito, de um império dino?
Se o alcançastes com saber divino,
Se com encantamentos de Medeia?

De que escondidas conchas escolhestes
As perlas preciosas orientais
Que, falando, mostrais no doce riso?

Pois vos formastes tal como quisestes,
Vigiai-vos de vós, não vos vejais;
Fugi das fontes: lembre-vos Narciso.

Luís Vaz de Camões

Doce contentamento já passado

Doce contentamento já passado,
em que todo o meu bem já consistia,
quem vos levou de minha companhia
e me deixou de vós tão apartado?

Quem cuidou que se visse neste estado
naquelas breves horas de alegria,
quando minha ventura consentia
que de enganos vivesse meu cuidado?

Fortuna minha foi cruel e dura
aquela, que causou meu perdimento,
com a qual ninguém pode ter cautela.

Nem se engane nenhüa criatura,
que não pode nenhum impedimento
fugir do que ordena sua estrela.

Luís Vaz de Camões

Doce sonho, suave e soberano

Doce sonho, suave e soberano,
se por mais longo tempo me durara!
Ah! quem de sonho tal nunca acordara,
pois havia de ver tal desengano!

Ah! deleitoso bem! ah! doce engano,
se por mais largo espaço me enganara!
Se então a vida mísera acabara,
de alegria e prazer morrera ufano.

Ditoso, não estando em mim, pois tive,
dormindo, o que acordado ter quisera.
Olhai com que me paga meu destino!

Enfim, fora de mim, ditoso estive.
Em mentiras ter dita razão era,
pois sempre nas verdades fui mofino.

Luís Vaz de Camões

Doces e claras águas do Mondego

Doces e claras águas do Mondego,
Doce repouso de minha lembrança,
Onde a comprida e pérfida esperança
Longo tempo após si me trouxe cego:

De vós me aparto, sim; porém não nego
Que inda a longa memória, que me alcança,
Me não deixa de vós fazer mudança;
Mas quanto mais me alongo, mais me achego.

Bem puderá a Fortuna este instrumento
Da alma levar por terra nova e estranha,
Oferecido ao mar remoto, ao vento;

Mas alma, que de cá vos acompanha,
Nas asas do ligeiro pensamento,
Pera vós, águas, voa, e em vós se banha.

Luís Vaz de Camões

Doces lembranças da passada glória

Doces lembranças da passada glória,
que me tirou Fortuna roubadora,
deixai-me repousar em paz üa hora,
que comigo ganhais pouca vitória.

Impressa tenho n'alma larga história
deste passado bem que nunca fora
(ou fora, e não passara); mas já agora
em mim não pode haver mais que a memória.

Vivo em lembranças, mouro de esquecido
de quem sempre devera ser lembrado,
se lhe lembrara estado tão contente.

Oh! quem tornar pudera a ser nacido!
Soubera-me lograr do bem passado,
se conhecer soubera o mal presente.

Luís Vaz de Camões

Dos Céus à terra dece a mor beleza

Dos Céus à terra dece a mor beleza,
une-se à carne nossa e fá-la nobre;
e, sendo a humanidade dantes pobre,
hoje subida fica à mor alteza.

Busca o Senhor mais rico a mor pobreza
que, como ao mundo o seu amor descobre,
de palhas vis o corpo tenro cobre,
e por elas o mesmo Céu despreza.

Como Deus em pobreza à terra dece?
O que é mais pobre tanto lhe contenta
que só rica a pobreza lhe parece.

Pobreza este Presépio representa.
Mas tanto, por ser pobre, já merece
que quanto é pobre mais, mais lhe contenta.

Luís Vaz de Camões

Dos ilustres antigos que deixaram

Dos ilustres antigos que deixaram
tal nome, que igualou fama à memória,
ficou por luz do tempo a larga história
dos feitos em que mais se assinalaram.

Se se com cousas destes cotejaram
mil vossas, cada üa tão notória,
vencera a menor delas a mor glória
que eles em tantos anos alcançaram.

A glória sua foi; ninguém lha tome.
Seguindo cada um vários caminhos,
estátuas levantando no seu Templo.

Vós, honra portuguesa e dos Coutinhos,
ilustre Dom João, com milhor nome
a vós encheis de glória e a nós de exemplo.

Luís Vaz de Camões

El vaso reluciente y cristalino

El vaso reluciente y cristalino,
de Ángeles agua clara y olorosa,
de blanca seda ornado y fresca rosa,
ligado con cabellos de oro fino,

bien claro parecía el don divino
labrado por la mano artificiosa
de aquella blanca Ninfa, graciosa
más que el rubio lucero matutino.

Nel vaso vuestro cuerpo se afigura,
raxado de los blancos miembros bellos,
y en el agua vuestra ánima pura.

La seda es la blancura, y los cabellos
son las prisiones y la ligadura
con que mi libertad fue asida dellos.

Luís Vaz de Camões

Em fermosa Leteia se confia

Em fermosa Leteia se confia,
por onde vaidade tanto alcança
que, tornada em soberba a confiança,
com os deuses celestes competia.

Por que não fosse avante esta ousadia
— que nacem muitos erros da tardança -
em efeito puseram a vingança,
que tamanha doudice merecia.

Mas Oleno, perdido por Leteia,
não lhe sofrendo Amor que suportasse
castigo duro tanta fermosura,

quis padecer em si a pena alheia;
mas, por que a morte Amor não apartasse,
ambos tornados são em pedra dura.

Luís Vaz de Camões

Em prisões baixas fui um tempo atado

Em prisões baixas fui um tempo atado,
Vergonhoso castigo de meus erros;
Inda agora arrojando levo os ferros
Que a Morte, a meu pesar, tem já quebrado.

Sacrifiquei a vida a meu cuidado,
Que Amor não quer cordeiros nem bezerros;
Vi mágoas, vi misérias, vi desterros:
Parece-me que estava assi ordenado.

Contentei-me com pouco, conhecendo
Que era o contentamento vergonhoso,
Só por ver que cousa era viver ledo.

Mas minha estrela, que eu já agora entendo,
A Morte cega e o Caso duvidoso,
Me fizeram de gostos haver medo.

Luís Vaz de Camões

Em um batel que com doce meneio

Em um batel que com doce meneio
o aurífero Tejo dividia,
vi belas damas ou, melhor diria,
belas estrelas, e um Sol no meio.

As delicadas filhas de Nereio,
com mil cordas de doce harmonia,
iam amarrando a bela companhia
que, se eu não erro, por honrá-las veio.

Ó fermosas Nereidas que, cantando,
lograis aquela vista tão serena
que a vida, em tantos males, quer trazer-me:

dizei-lhe que olhe que se vai passando
o curto tempo e, a tão longa pena,
o espírito é pronto, a carne enferma.

Luís Vaz de Camões

En una selva al despuntar del dia

En una selva al despuntar del dia
estava Endemion triste y lloroso,
buelto al rayo del sol que, presuroso,
por la falda de un monte decendia.

Mirando al turbador de su alegria,
contrario de su bien y su reposo,
tras un suspiro y otro congoxoso,
razones semejantes le dizia:

«Luz clara, para mi la más escura
que, con este passeo apresurado,
mi Sol con tu tiniebla escureciste:

si allá pueden moverte en essa altura
las quexas de un Pastor enamorado,
no tardes en bolver adó saliste». lu

Luís Vaz de Camões

Enquanto Febo os montes acendia

Enquanto Febo os montes acendia
do Céu com luminosa claridade,
por evitar do ócio a castidade,
na caça o tempo Délia dispendia.

Vénus, que então de furto descendia,
por cativar de Anquises a vontade,
vendo Diana em tanta honestidade,
quase zombando dela, lhe dizia:

«Tu vais com tuas redes na espessura
os fugitivos cervos enredando;
mas as minhas enredam o sentido.»

«Milhor é – respondia a deusa pura -
nas redes leves cervos ir tomando
que tomar-te a ti nelas teu marido.»

Luís Vaz de Camões

Enquanto quis Fortuna que tivesse

Enquanto quis Fortuna que tivesse
esperança de algum contentamento,
o gosto de um suave pensamento
me fez que seus efeitos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse
minha escritura a algum juízo isento,
escureceu-me o engenho co tormento,
para que seus enganos não dissesse.

Ó vós, que Amor obriga a ser sujeitos
a diversas vontades! Quando lerdes
num breve livro casos tão diversos,

verdades puras são, e não defeitos.
E sabei que, segundo o amor tiverdes,
tereis o entendimento de meus versos.

Luís Vaz de Camões

Erros meus, má fortuna, amor ardente

Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que pera mim bastava amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas, que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!

Luís Vaz de Camões

Esforço grande, igual ao pensamento

Esforço grande, igual ao pensamento;
pensamentos em obras divulgados,
e não em peito tímido encerrados
e desfeitos despois em chuva e vento;

ânimo da cobiça baixa isento,
dino por isso só de altos estados,
fero açoute dos nunca bem domados
povos do Malabar sanguinolento;

gentileza de membros corporais,
ornados de pudica continência,
obra por certo rara de natura:

estas virtudes e outras muitas mais,
dinas todas da homérica eloquência,
jazem debaixo desta sepultura.

Luís Vaz de Camões

Está o lascivo e doce passarinho

Está o lascivo e doce passarinho
Com o biquinho as penas ordenando,
O verso sem medida, alegre e brando,
Espedindo no rústico raminho.

O cruel caçador (que do caminho
Se vem calado e manso desviando),
Na pronta vista a seta endereitando,
Lhe dá no Estígio lago eterno ninho.

Destarte o coração, que livre andava
(Posto que já de longe destinado),
Onde menos temia, foi ferido.

Porque o Frecheiro cego me esperava,
Pera que me tomasse descuidado,
Em vossos claros olhos escondido.

Luís Vaz de Camões

Está-se a Primavera trasladando

Está-se a Primavera trasladando
em vossa vista deleitosa e honesta;
nas lindas faces, olhos, boca e testa,
boninas, lírios, rosas debuxando.

De sorte, vosso gesto matizando,
natura quanto pode manifesta
que o monte, o campo, o rio e a floresta
se estão de vós, Senhora, namorando.

Se agora não quereis que quem vos ama
possa colher o fruito destas flores,
perderão toda a graça vossos olhos.

Porque pouco aproveita, linda Dama,
que semeasse Amor em vós amores,
se vossa condição produze abrolhos.

Luís Vaz de Camões

Este amor que vos tenho, limpo e puro

Este amor que vos tenho, limpo e puro
De pensamento vil nunca tocado,
Em minha tenra idade começado
Tê-lo dentro nesta alma só procuro.

De haver nele mudança estou seguro,
Sem temer nenhum caso ou duro Fado,
Nem o supremo bem ou baixo estado,
Nem o tempo presente nem futuro.

A bonina e a flor asinha passa;
Tudo por terra o Inverno e Estio deita;
Só pera meu amor é sempre Maio.

Mas ver-vos pera mim, Senhora, escassa,
E que essa ingratidão tudo me enjeita,
Traz este meu amor sempre em desmaio.

Luís Vaz de Camões

Eu cantei já, e agora vou chorando

Eu cantei já, e agora vou chorando
O tempo que cantei tão confiado;
Parece que no canto já passado
Se estavam minhas lágrimas criando.

Cantei: mas se me alguém pergunta "quando":
Não sei, que também fui nisso enganado.
É tão triste este meu presente estado
Que o passado por ledo estou julgando.

Fizeram-me cantar, manhosamente,
Contentamentos não, mas confianças;
Cantava, mas já era ao som dos ferros.

De quem me queixarei, se tudo mente?
Mas eu que culpa ponho às esperanças
Onde a Fortuna injusta é mais que os erros?

Luís Vaz de Camões

Eu vivia de lágrimas isento

Eu vivia de lágrimas isento,
num engano tão doce e deleitoso
que, em que outro amante fosse mais ditoso,
não valiam mil glórias um tormento.

Vendo-me possuir tal pensamento,
de nenhüa riqueza era envejoso;
vivia bem, de nada receoso,
com doce amor e doce sentimento.

Cobiçosa, a Fortuna me tirou
deste meu tão contente e alegre estado,
e passou-se este bem, que nunca fora;

em troco do qual bem só me deixou
lembranças, que me matam cada hora,
trazendo-me à memória o bem passado.

Luís Vaz de Camões

Ferido sem ter cura perecia

Ferido sem ter cura perecia
o forte e duro Télefo temido,
por aquele que n' água foi metido,
a quem ferro nenhum cortar podia.

Ao Apolíneo Oráculo pedia
conselho para ser restituído;
respondeu que tornasse a ser ferido
por quem o já ferira, e sararia.

Assi, Senhora, quer minha ventura
que, ferido de ver-vos, claramente
com vos tornar a ver Amor me cura.

Mas é tão doce vossa fermosura,
que fico como hidrópico doente,
que co beber lhe crece mor secura.

Luís Vaz de Camões

Fermosos olhos que na idade nossa

Fermosos olhos que na idade nossa
mostrais do Céu certíssimos sinais,
se quereis conhecer quanto possais,
olhai-me a mim, que sou feitura vossa.

Vereis que de viver me desapossa
aquele riso, com que a vida dais;
vereis como de Amor não quero mais,
por mais que o tempo corra e o dano possa.

E se dentro nest'alma ver quiserdes,
como num claro espelho, ali vereis
também a vossa, angélica e serena.

Mas eu cuido que só por não me verdes,
ver-vos em mim, Senhora, não quereis,
tanto gosto levais de minha pena.

Luís Vaz de Camões

Fiou-se o coração, de muito isento

Fiou-se o coração, de muito isento
de si, cuidando mal que tomaria
tão ilícito amor tal ousadia,
tal modo nunca visto de tormento.

Mas os olhos pintaram tão a tento
outros que visto têm, na fantasia,
que a razão, temerosa do que via,
fugiu, deixando o campo ao pensamento.

«Ó Hipólito casto que, de jeito,
de Fedra, tua madrasta, foste amado,
que não sabia ter nenhum respeito!

Em mim vingou o Amor teu casto peito;
mas está desse agravo tão vingado,
que se arrepende já do que tem feito».

Luís Vaz de Camões

Foi já um tempo doce cousa amar

Foi já um tempo doce cousa amar,
enquanto me enganava a esperança;
o coração, com esta confiança,
todo se desfazia em desejar.

Ó vão, caduco e débil esperar!
Como se desengana üa mudança!
Que, quanto é mor a bem-aventurança,
tanto menos se crê que há-de durar.

Quem já se viu contente e prosperado,
vendo-se em breve tempo em pena tanta,
razão tem de viver bem magoado.

Porém quem tem o mundo exprimentado,
não o magoa a pena nem o espanta,
que mal se estranhará o costumado.

Luís Vaz de Camões

Fortuna em mi guardando seu direito

Fortuna em mi guardando seu direito,
Em verde derrubou minha alegria.
Oh! quanto se acabou naquele dia,
Cuja triste lembrança arde em meu peito!

Quando contemplo tudo, bem suspeito
Que, a tão bem, tal descanso se devia,
Por não dizer o mundo que podia
Achar-se em seu engano bem perfeito.

Mas se a fortuna o fez por descontar-me
Tamanho gosto, em cujo sentimento
A memória não faz senão matar-me,

Que culpas pode dar-me o sofrimento,
Se a causa que ele tem de atormentar-me,
Eu tenho de sofrer o seu tormento?

Luíz Vaz de Camões

Grão tempo há já que soube da Ventura

Grão tempo há já que soube da Ventura
a vida que me tinha destinada;
que a longa experiência da passada
me dava claro indício da futura.

Amor fero, cruel, Fortuna dura,
bem tendes vossa força exprimentada:
assolai, destrui, não fique nada;
vingai-vos desta vida, que inda dura.

Soube Amor da Ventura que a não tinha;
e, por que mais sentisse a falta dela,
de imagens impossíveis me mantinha.

Mas vós, Senhora, pois que minha estrela
não foi melhor, vivei nesta alma minha,
que não tem a Fortuna poder nela.

Luís Vaz de Camões

Ilustre e dino ramo dos Meneses

Ilustre e dino ramo dos Meneses,
aos quais o prudente e largo Céu
(que errar não sabe), em dote concedeu
rompesse os maométicos arneses;

desprezando a Fortuna e seus revezes,
ide para onde o Fado vos moveu;
erguei flamas no mar alto Eritreu,
e sereis nova luz aos Portugueses.

Oprimi com tão firme e forte peito
o Pirata insolente, que se espante
e trema Taprobana e Gedrosia.

Dai nova causa à cor do árabo estreito:
assi que o roxo mar, daqui em diante,
o seja só co sangue de Turquia.

Luís Vaz de Camões

Indo o triste pastor todo embebido

Indo o triste pastor todo embebido
na sombra de seu doce pensamento,
tais queixas espalhava ao leve vento
cum brando suspirar da alma saído:

«A quem me queixarei, cego, perdido,
pois nas pedras não acho sentimento?
Com quem falo? A quem digo meu tormento
que onde mais chamo, sou menos ouvido?

Oh! bela Ninfa, porque não respondes?
Porque o olhar-me tanto me encareces?
Porque queres que sempre me querele?

Eu quanto mais te vejo, mais te escondes!
Quanto mais mal me vês, mais te endureces!
Assi que co mal cresce a causa dele.»

Luís Vaz de Camões

Já a saudosa Aurora destoucava

Já a saudosa Aurora destoucava
os seus cabelos de ouro delicados,
e as flores nos campos esmaltados
do cristalino orvalho borrifava;

quando o fermoso gado se espalhava
de Sílvio e de Laurente pelos prados;
pastores ambos, e ambos apartados
de quem o mesmo Amor não se apartava.

Com verdadeiras lágrimas, Laurente
«Não sei – dezia – ó Ninfa delicada,
porque não morre já quem vive ausente,

pois a vida sem ti não presta nada».
Responde Sílvio: «Amor não o consente,
que ofende as esperanças da tornada».

Luís Vaz de Camões

Já claro vejo bem, já bem conheço

Já claro vejo bem, já bem conheço
quanto aumentando vou o meu tormento;
pois sei que fundo em água, escrevo em vento,
e que o cordeiro manso ao lobo peço;

que Aracne [sou], pois já com Palas teço;
que a tigres em meus males me lamento;
que reduzir o mar a um vaso intento,
aspirando a esse Céu que não mereço.

Quero achar paz em um confuso Inferno;
na noite, do Sol puro a claridade;
e o suave Verão no duro Inverno.

Busco em luzente Olimpo escuridade
e o desejado bem no mal eterno,
buscando amor em vossa crueldade.

Luís Vaz de Camões

Já não sinto, Senhora, os desenganos

Já não sinto, Senhora, os desenganos
com que minha afeição sempre tratastes,
nem ver o galardão que me negastes,
merecido por fé, há tantos anos.

A mágoa choro só, só choro os danos
de ver por quem, Senhora, me trocastes;
mas em tal caso vós só me vingastes
de vossa ingratidão, vossos enganos.

Dobrada glória dá qualquer vingança
que o ofendido toma do culpado,
quando se satisfaz com cousa justa;

mas eu, de vossos males e esquivança
— de que agora me vejo bem vingado —
não o quisera eu tanto à vossa custa.

Luís Vaz de Camões

Já tempo foi que meus olhos folgavam

Já tempo foi que meus olhos folgavam
de ver os verdes campos graciosos;
tempo foi já também que os sonorosos
ribeiros meus ouvidos recreavam.

Foi tempo que nos bosques me alegravam
os cantares das aves saudosos,
os freixos e altos álamos umbrosos
cujos ramos por cima se ajuntavam.

Permanecer não pude em tal folgança;
não me pôde durar esta alegria,
não quis este meu bem ter segurança;

ainda neste tempo eu não sentia
do fero Amor a força e a mudança,
os laços e as prisões com que prendia.

Luís Vaz de Camões

Julga-me a gente toda por perdido

Julga-me a gente toda por perdido
vendo-me, tão entregue a meu cuidado.
andar sempre dos homens apartado
e dos tratos humanos esquecido.

Mas eu, que tenho o mundo conhecido
e quase que sobre ele ando dobrado,
tenho por baixo, rústico, enganado,
quem não é com meu mal engrandecido.

Vão revolvendo a terra, o mar e o vento,
busque riquezas, honras a outra gente,
vencendo ferro, fogo, frio e calma;

que eu só, em humilde estado, me contento
de trazer esculpido eternamente
vosso fermoso gesto dentro n'alma.

Luís Vaz de Camões

A chaga que, Senhora, me fizestes

A chaga que, Senhora, me fizestes,
não foi para curar-se em um só dia;
porque crescendo vai com tal porfia
que bem descobre o intento que tivestes.

De causar tanta dor vos não doestes.
Mas, a doer-vos, dor me não seria,
pois já com esperança me veria
do que vós que em mim visse não quisestes.

Os olhos com que todo me roubastes
foram causa do mal que vou passando;
e vós estais fingindo o não causastes.

Mas eu me vingarei. E sabeis quando?
Quando vos vir queixar porque deixastes
ir-se a minha alma neles abrasando.

Luís Vaz de Camões

A D. Leonis Pereira

Vós, Ninfas da gangética espessura,
cantai suavemente, em voz sonora,
um grande Capitão, que a roxa Aurora
dos filhos defendeu da noite escura.

Ajuntou-se a caterva negra e dura,
que na áurea Quersoneso afouta mora,
para lançar do caro ninho fora
aqueles que mais podem que a ventura.

Mas um forte Leão, com pouca gente,
a multidão tão fera como nécia
destruindo castiga e torna fraca.

Pois, ó Ninfa, cantai; que claramente
mais do que fez Leónidas em Grécia,
o nobre Leonis fez em Malaca.

Luís Vaz de Camões

A D. Luís de Ataíde, Viso-Rei

Que vençais no Oriente tantos reis,
que de novo nos deis da Índia o estado,
que escureçais a fama que ganhado
tinham os que ganharam a infiéis;

que do tempo tenhais vencido as leis,
que tudo, enfim, vençais co tempo armado;
mais é vencer na pátria, desarmado,
os monstros e as quimeras que venceis.

E assi, sobre vencerdes tanto imigo,
e por armas fazer que, sem segundo,
vosso nome no mundo ouvido seja,

o que vos dá mais nome inda no mundo
é vencerdes, Senhor, no Reino amigo,
tantas ingratidões, tão grande enveja!

Luís Vaz de Camões

A D. Simão da Silveira

De um tão felice engenho, produzido
de outro, que o claro Sol não viu maior,
é trazer cousas altas no sentido,
todas dinas de espanto e de louvor.

Museu foi antiquíssimo escritor,
filósofo e poeta conhecido,
discípulo do Músico amador
que co som teve o Inferno suspendido.

Este pôde abalar o monte mudo,
cantando aquele mal, que eu já passei,
do mancebo de Abido mal sisudo.

Agora contam já (segundo achei),
Tasso, e o nosso Boscão, que disse tudo
dos segredos que move o cego Rei.

Luís Vaz de Camões
A D. Simão da Silveira, em resposta de outro seu, pelos mesmos consoantes, mandando-lhe perguntar quem fora o primeiro poeta que fizera sonetos

A fermosura desta fresca serra

A fermosura desta fresca serra
E a sombra dos verdes castanheiros,
O manso caminhar destes ribeiros,
Donde toda a tristeza se desterra;

O rouco som do mar, a estranha terra,
O esconder do Sol pelos outeiros,
O recolher dos gados derradeiros,
Das nuvens pelo ar a branda guerra;

Enfim, tudo o que a rara natureza
Com tanta variedade nos of'rece,
Me está, se não te vejo, magoando.

Sem ti, tudo me enoja e me aborrece;
Sem ti, perpetuamente estou passando,
Nas mores alegrias, mor tristeza.

Luís Vaz de Camões

À morte de D. António de Noronha

Em flor vos arrancou, de então crescida
— Ah! Senhor dom António! — a dura sorte,
donde fazendo andava o braço forte
a fama dos Antigos esquecida.

Üa só razão tenho conhecida
com que tamanha mágoa se conforte:
que pois no mundo havia honrada morte,
que não podíeis ter mais larga a vida.

Se meus humildes versos podem tanto
que co desejo meu se iguale a arte,
especial matéria me sereis.

E, celebrado em triste e longo canto,
se morrestes nas mãos do fero Marte,
na memória das gentes vivereis.

Luís Vaz de Camões

A Morte, que da vida o nó desata

A Morte, que da vida o nó desata,
os nós, que dá o Amor, cortar quisera
na Ausência, que é contra ele espada fera,
e co Tempo, que tudo desbarata.

Duas contrárias, que üa a outra mata,
a Morte contra o Amor ajunta e altera:
üa é Razão contra a Fortuna austera,
outra, contra a Razão, Fortuna ingrata.

Mas mostre a sua imperial potência
a Morte, em apartar dum corpo a alma.
Duas num corpo o Amor ajunte e una;

por que assi leve triunfante a palma
Amor da Morte, apesar da Ausência,
do Tempo, da Razão e da Fortuna.

Luís Vaz de Camões

À romana Populónia perguntava

À romana Populónia perguntava
um certo curioso e não prudente
porque a alimária comummente
em tempo certo do ano se juntava;

a qual, como discreta e que cuidava
em repostas ser suma e eminente,
com üa só palavra, claramente,
respondeu, e mostrou com quem folgava:

«Bestas são». Dá a entender que não entendem
quão grande suavidade se encerra
na cópula himeneia e ajuntamento.

Mas mores bestas são os que pretendem
buscar contentamento à carne e à terra,
deixando a alma prestes ao tormento.

Luís Vaz de Camões

À sepultura de D. Fernando de Castro

Debaixo desta pedra está metido,
das sanguinosas armas descansado,
o capitão ilustre, assinalado,
Dom Fernando de Castro esclarecido.

Por todo o Oriente tão temido,
e da enveja da fama tão cantado,
este, pois, só agora sepultado,
está aqui já em terra convertido.

Alegra-te, ó guerreira Lusitânia,
por este Viriato que criaste;
e chora-o, perdido, eternamente.

Exemplo toma nisto de Dardânia;
que, se a Roma co ele aniquilaste,
nem por isso Cartago está contente.

Luís Vaz de Camões

À sepultura del-Rei D. João III

«Quem jaz no grão sepulcro, que descreve
tão ilustres sinais no forte escudo?»
«Ninguém; que nisso, enfim, se torna tudo;
mas foi quem tudo pôde e tudo teve».

«Foi Rei?» «Fez tudo quanto a Rei se deve;
pôs na guerra e na paz devido estudo;
mas quão pesado foi ao Mouro rudo
tanto lhe seja agora a terra leve».

«Alexandre será?» «Ninguém se engane;
que sustentar mais que adquirir se estima».
«Será Adriano, grão senhor do mundo?»

«Mais observante foi da Lei de cima».
«É Numa?» «Numa, não; mas é Joane
de Portugal terceiro, sem segundo».

Luís Vaz de Camões

A ti, Senhor, a quem as sacras Musas

A ti, Senhor, a quem as sacras Musas
nutrem e cibam de poção divina
(não as da fonte Délia cabalina,
que são Medeias, Circes e Medusas,

mas aquelas, em cujo peito, infusas
as leis estão, que a lei da Graça ensina,
beninas no amor e na doutrina
e não soberbas, cegas e confusas),

este pequeno parto, produzido
de meu saber e fraco entendimento,
üa vontade grande te oferece.

Se for de ti notado de atrevido,
daqui peço perdão do atrevimento,
o qual esta vontade te merece.

Luís Vaz de Camões

A violeta mais bela que amanhece

A violeta mais bela que amanhece
no vale, por esmalte da verdura,
com seu pálido lustre e fermosura,
por mais bela, Violante, te obedece.

Perguntas-me porquê? Porque aparece
seu nome em ti e sua cor mais pura;
e estudar em [teu] rosto só procura
tudo quanto em beldade mais florece.

Oh! luminosa flor, oh! Sol mais claro,
único roubador de meu sentido,
não permitas que Amor me seja avaro!

Oh! penetrante seta de Cupido,
que queres? Que te peça, por reparo,
ser, neste vale, Eneias desta Dido?

Luís Vaz de Camões

Ah! imiga cruel, que apartamento

Ah! imiga cruel, que apartamento
é este que fazeis da pátria terra?
Quem do paterno ninho vos desterra,
glória dos olhos, bem do pensamento?

Is tentar da Fortuna o movimento
e dos ventos cruéis a dura guerra?
Ver brenhas de água, e o mar feito em serra,
levantado de um vento e de outro vento?

Mas já que vos partis, sem vos partirdes,
parta convosco o Céu tanta ventura
que seja mor que aquela que esperardes.

E só nesta verdade ide segura:
que ficam mais saudades, com partirdes,
do que breves desejos de chegardes.

Luís Vaz de Camões

Ah, Fortuna cruel! Ah, duros Fados!

Ah, Fortuna cruel! Ah, duros Fados!
Quão asinha em meu dano vos mudastes!
Passou o tempo que me descansastes;
Agora descansais com meus cuidados.

Deixastes-me sentir os bens passados,
Para mor dor da dor que me ordenastes;
Então núa hora juntos mos levastes,
Deixando em seu lugar males dobrados.

Ah! quanto milhor fora não vos ver,
Gostos, que assi passais tão de corrida
Que fico duvidoso se vos vi.

Sem vós já me não fica que perder,
Senão se for esta cansada vida
Que, por mor perda minha, não perdi.

Luís Vaz de Camões

Alegres campos, verdes arvoredos

Alegres campos, verdes arvoredos,
Claras e frescas águas de cristal,
Que em vós os debuxais ao natural,
Discorrendo da altura dos rochedos;

Silvestres montes, ásperos penedos,
Compostos em concerto desigual,
Sabei que, sem licença de meu mal,
Já não podeis fazer meus olhos ledos.

E, pois me já não vedes como vistes,
Não me alegrem verduras deleitosas,
Nem águas que correndo alegres vêm.

Semearei em vós lembranças tristes,
Regando-vos com lágrimas saudosas,
E nascerão saudades de meu bem.

Luís Vaz de Camões