I
Pois que os deuses antigos e os antigos
Divinos sonhos por esse ar se somem,
E á luz do altar da fé, em Templo ou Dolmen,
A apagaram os ventos inimigos;
Pois que o Sinai se enubla e os seus pacigos,
Secos à mingua de água, se consomem,
E os profetas d'outrora todos dormem
Esquecidos, em terra sem abrigos;
Pois que o céu se fechou e já não desce
Na escada de Jacob (na de Jesus!)
Um só anjo, que aceite a nossa prece;
É que o lírio da Fé já não renasce:
Deus tapou com a mão a sua luz
E ante os homens velou a sua face!
II
Pálido Cristo, oh condutor divino!
A custo agora a tua mão tão doce
Incerta nos conduz, como se fosse
Teu grande coração perdendo o tino...
A palavra sagrada do Destino
Na boca dos oraculos secou-se:
A luz da sarça ardente dissipou-se
Ante os olhos do vago peregrino!
Ante os olhos dos homens — porque o mundo
Desprendido rolou das mãos de Deus,
Como uma cruz das mãos d'um moribundo!
Porque já se não lê seu nome escrito
Entre os astros... e os astros, como ateus,
Já não querem mais lei que o infinito!
III
Força é pois ir buscar outro caminho!
Lançar o arco de outra nova ponte
Por onde a alma passe — e um alto monte
Aonde se abre á luz o nosso ninho.
Se nos negam aqui o pão e o vinho,
Avante! é largo, imenso esse horizonte...
Não, não se fecha o mundo! e além, defronte,
E em toda a parte ha luz, vida e carinho!
Avante! os mortos ficarão sepultos...
Mas os vivos que sigam, sacudindo
Como o pó da estrada os velhos cultos!
Doce e brando era o seio de Jesus...
Que importa? havemos de passar, seguindo,
Se além do seio d'ele houver mais luz!
IV
Conquista pois sósinho o teu futuro,
Já que os celestes guias te hão deixado,
Sobre uma terra ignota abandonado,
Homem — proscrito rei — mendigo escuro!
Se não tens que esperar do céo (tão puro,
Mas tão cruel!) e o coração magoado
Sentes já de ilusões desenganado,
Das ilusões do antigo amor perjuro:
Ergue-te, então, na magestade estoica
D'uma vontade solitaria e altiva,
N'um esforço supremo de alma heroica!
Faze um templo dos muros da cadeia,
Prendendo a imensidade eterna e viva
No círculo de luz da tua Idéia!
V
Mas a Idéia quem é? quem foi que a viu,
Jamais, a essa encoberta peregrina?
Quem lhe beijou a sua mão divina?
Com seu olhar de amor quem se vestiu?
Pálida imagem, que a água de algum rio,
Refletindo, levou... incerta e fina
Luz, que mal bruxulêa pequenina...
Nuvem, que trouxe o ar, e o ar sumio...
Estendei, estendei-lhe os vossos braços,
Magros da febre d'um sonhar profundo,
Vós todos que a seguis n'esses espaços!
E entanto, oh alma triste, alma chorosa,
Tu não tens outra amante em todo o mundo
Mais que essa fria virgem desdenhosa!
VI
Outra amante não ha! não ha na vida
Sombra a cobrir melhor nossa cabeça,
Nem balsamo mais doce, que adormeça
Em nós a antiga, a secular ferida!
Quer fuja esquiva, ou se ofereça erguida,
Como quem sabe amar e amar confessa,
Quer nas nuvens se esconda ou apareça,
Será sempre ela a esposa prometida!
Nossos desejos para ti, oh fria,Se erguem,
bem como os braços do proscrito
Para as bandas da pátria, noite e dia.
Podes fugir... nossa alma, delirante,
Seguir-te-ha a travéz do infinito,
Até voltar comtigo, triunfante!
VII
Oh! o noivado bárbaro! o noivado
Sublime! aonde os céus, os céus ingentes,
Serão leito de amor, tendo pendentes
Os astros por docel e cortinado!
As bodas do Desejo, embriagado
De ventura, a final! visões ferventes
De quem nos braços vae de ideais ardentes
Por espaços sem termo arrebatado!
Lá, por onde se perde a fantasia
No sonho da beleza: lá, aonde
A noite tem mais luz que o nosso dia;
Lá, no seio da eterna claridade,
Aonde Deus á humana voz responde;
É que te havemos abraçar, Verdade!
VIII
Lá! Mas aonde é lá? — Espera,
Coração indomado! o céu, que anceia
A alma fiel, o céo, o céu da Idéia.
Em vão o buscas n'essa imensa esfera!
O espaço é mudo: a imensidade austera
De balde noite e dia incendeia...
Em nenhum astro, em nenhum sol se alteia
A rosa ideal da eterna primavera!
O Paraíso e o templo da Verdade,
Oh mundos, astros, sóis, constelações!
Nenhum de vós o tem na imensidade...
A Idéia, o sumo Bem, o Verbo, a Essência,
Só se revela aos homens e ás nações
No céo incorruptível da Consciência!
Antero de Quental
quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007
A idéia
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Antero de Quental
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