terça-feira, 25 de dezembro de 2007

Sonetos

Soneto é um poema de forma fixa, composto por 14 versos.


Ao que tudo indica, o soneto - do italiano sonetto, pequena canção ou, literalmente, pequeno som - foi criado no começo do século XIII, na Sicília, onde era cantado na corte de Frederico II da mesma forma que as tradicionais baladas provençais.


Alguns atribuem a invenção do soneto a Jacopo da Lentini (conhecido como Jacopo Notaro, após receber o título «Jacobus de Lentino domini imperatoris notarius» ) - poeta siciliano e imperial de Frederico II, que surgiu como uma espécie de canção ou de letra escrita para música, possuindo uma oitava e dois tercetos, com melodias diferentes.

O número de linhas e a disposição das rimas permaneceu variável até que um poeta de Santa Firmina, Guittone D'Arezzo, tornou-se o primeiro a adotar e aderir definitivamente àquilo que seria reconhecido como a melhor forma de expressão de uma emoção isolada, pensamento ou idéia: o soneto.


Durante o século XIII, Fra Guittone, como era conhecido, criou o soneto guitoniano, padronizado, cujo estilo foi empregado por Petrarca e Dante Alighieri, com pequenas variações. Tais sonetos são obras marcantes, se considerarmos as circunstâncias em que eles surgiram.


Coube ao fiorentino Francesco Petrarca aperfeiçoar a estrutura poética iniciada na Sicília, difundindo-a por toda a Europa em suas viagens. Sua obra engloba 317 sonetos contidos no "Il Canzoniere", a coletânea de poesia que exerceu influência sobre toda a literatura ocidental. As melhores poesias desse livro são dedicadas a Laura de Novaes, por quem possuía um amor platónico. Destacam-se os recursos metafóricos e o lirismo erótico dos sonetos.


Dante Alighieri, o autor da consagrada A Divina Comédia, e também um seguidor de Guittone, em sua infância já compunha sonetos amorosos. Seu amor impossível por Beatriz (provavelmente Beatrice Portinari) foi imortalizado em vários sonetos em "Vita Nuova", seu primeiro trabalho literário de grande importância.


Graças a uma viagem que fez para a Itália em 1551, o poeta português Sá de Miranda regressando em 1526, trouxe para Portugal uma nova estética, introduzindo pela primeira vez o Soneto, a canção, a sextina, as composições em tercetos e em oitavas e os versos de dez sílabas, conhecidos como decassílabos.


Anos se passaram até que dois ícones da literatura mundial, um português e um inglês, deram ao Soneto, cada um ao seu modo, o toque de mestre: Luís Vaz de Camões e William Shakespeare.

Camões é considerado o maior poeta clássico da Literatura Moderna.


Frequentou a nobreza em Portugal, toma parte em diversas expedições militares, mas foi exilado por suas posições políticas. Passou alguns anos na prisão, de onde saiu com "Os lusíadas", uma obra que o colocou entre os maiores poetas mundiais de todos os tempos. Apesar disso, morreu pobre. Escreveu diversos sonetos, tendo o amor como tema principal.

Shakespeare, além de teatrólogo, desenvolveu uma habilidade única na poesia. O seu soneto, o soneto inglês, é composto por três quartetos e um dístico, diferente da composição original de Petrarca. O mais célebre dos escritores ingleses escreveu diversos poemas, alguns deles recheados de metáforas.


Desde então, o soneto adquiriu importância ao redor do mundo, tornando-se a melhor representação da poesia lírica. Alguns casos são notáveis: o poeta russo Aleksandr Pushkin compôs Eugene Onegin, um poema repleto de sonetos adotado por Tchaikovsky para compor uma de suas óperas; o francês Charles Baudelaire ajudou a divulgar os versos alexandrinos em Les Fleurs du Mal. Até Vivaldi usou-se de sonetos.


E por falar em versos alexandrinos, utilizados por muitos sonetistas, eles remontam - segundo alguns dicionários da língua portuguesa - a uma obra francesa do século XII chamada Le Roman d'Alexandre, versos de doze sílabas poéticas. Porém, os dicionários da língua espanhola - apesar de apontarem para a mesma origem - insistem em afirmar que os versos alexandrinos são aqueles que contêm quatorze sílabas gramaticais.

Finalmente, após aderir ao humanismo e ao estilo barroco, o poema dos catorze versos acabou sendo desprezado pelos iluministas. No século XIX, ele voltou a ser cultivado, com mais fervor, por românticos, parnasianos e simbolistas, sobrevivendo ao verso livre do modernismo - que viria em seguida - até aos dias atuais.


sábado, 22 de dezembro de 2007

Sempre a Razão vencida foi de Amor

Sempre a Razão vencida foi de Amor;
Mas, porque assim o pedia o coração,
Quis Amor ser vencido da Razão.
Ora que caso pode haver maior!

Novo modo de morte e nova dor!
Estranheza de grande admiração,
Que perde suas forças a afeição,
Por que não perca a pena o seu rigor.

Pois nunca houve fraqueza no querer,
Mas antes muito mais se esforça assim
Um contrário com outro por vencer.

Mas a Razão, que a luta vence, enfim,
Não creio que é Razão; mas há-de ser
Inclinação que eu tenho contra mim.

Luís Vaz de Camões

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Se me vem tanta glória só de olhar-te

Se me vem tanta glória só de olhar-te,
ă pena desigual deixar de ver-te;
Se presumo com obras merecer-te,
Grão paga de um engano é desejar-te.

Se aspiro por quem és a celebrar-te,
Sei certo por quem sou que hei-de ofender-te;
Se mal me quero a mim por bem querer-te,
Que prémio querer posso mais que amar-te?

Porque um tão raro amor não me socorre?
Ó humano tesouro! Ó doce glória!
Ditoso quem à morte por ti corre!

Sempre escrita estarás nesta memória;
E esta alma viverá, pois por ti morre,
Porque ao fim da batalha é a vitória.

Luís Vaz de Camões

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

Quem vê, Senhora, claro e manifesto

Quem vê, Senhora, claro e manifesto
O lindo ser de vossos olhos belos,
Se não perder de vista só em vê-los,
Já não paga o que deve a vosso gesto.

Este me parecia preço honesto;
Mas eu, por de vantagem merecê-los,
Dei mais a vida e alma por querê-los,
Donde já não me fica mais de resto.

Assim que a vida e alma e esperança,
E tudo quanto tenho, tudo é vosso,
E o proveito disso eu só o levo.

Porque é tamanha bem-aventurança
O dar-vos quanto tenho e quanto posso,
Que, quanto mais vos pago, mais vos devo.

Luís Vaz de Camões

domingo, 11 de novembro de 2007

Soneto 73

Em mim tu vês a época do estio
Na qual as folhas pendem, amarelas,
De ramos que se agitam contra o frio,
Coros onde cantaram aves belas.

Tu me vês no ocaso de um tal dia
Depois que o Sol no poente se enterra,
Quando depois que a noite o esvazia,
O outro eu da morte sela a terra.

Em mim tu vês só o brilho da pira
Que nas cinzas de sua juventude
Como em leito de morte agora expira

Comido pelo que lhe deu saúde.
Visto isso, tens mais força para amar
E amar muito o que em breve vais deixar.

William Shakespeare Tradução do site www. starnews2001.com.br/sonnets.html

Senhora minha, se de pura inveja

Senhora minha, se de pura inveja
Amor me tolhe a vista delicada,
A cor, de rosa e neve semeada,
E dos olhos a luz que o Sol deseja,

Não me pode tolher que vos não veja
Nesta alma, que ele mesmo vos tem dada,
Onde vos terei sempre debuxada,
Por mais cruel inimigo que me seja.

Nela vos vejo, e vejo que não nasce
Em belo e fresco prado deleitoso
Senão flor que dá cheiro a toda a serra.

Os lírios tendes nu~a e noutra face.
Ditoso quem vos vir, mas mais ditoso
Quem os tiver, se há tanto bem na terra!

Luís Vaz de Camões

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Soneto 71

Quando eu morrer não chores mais por mim
Do que hás de ouvir triste sino a dobrar
Dizendo ao mundo que eu fugi enfim
Do mundo vil pra com os vermes morar.

E nem relembres, se estes versos leres,
A mão que os escreveu, pois te amo tanto
Que prefiro ver de mim te esqueceres
Do que o lembrar-me te levar ao pranto.

Se leres estas linhas, eu proclamo,
Quando eu, talvez, ao pó tenha voltado,
Nem tentes relembrar como me chamo:

Que fique o amor, como a vida, acabado.
Para que o sábio, olhando a tua dor,
Do amor não ria, depois que eu me for.

William Shakespeare Tradução do site www. starnews2001.com.br/sonnets.html

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Se as penas com que Amor tão mal me trata

Se as penas com que Amor tão mal me trata
Permitirem que eu tanto viva delas,
Que veja escuro o lume das estrelas,
Em cuja vista o meu se acende e mata;

E se o tempo, que tudo desbarata
Secar as frescas rosas sem colhê-las,
Mostrando a linda cor das tranças belas
Mudada de ouro fino em bela prata;

Vereis, Senhora, então também mudado
O pensamento e aspereza vossa,
Quando não sirva já sua mudança.

Suspirareis então pelo passado,
Em tempo quando executar-se possa
Em vosso arrepender minha vingança.

Luís Vaz de Camões

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Que me quereis, perpétuas saudades?

Que me quereis, perpétuas saudades?
Com que esperança inda me enganais?
Que o tempo que se vai não torna mais,
E se torna, não tornam as idades.

Razão é já, ó anos, que vos vades,
Porque estes tão ligeiros que passais,
Nem todos pera um gosto são iguais,
Nem sempre são conformes as vontades.

Aquilo a que já quis é tão mudado,
Que quase é outra cousa, porque os dias
Têm o primeiro gosto já danado.

Esperanças de novas alegrias
Não mas deixa a Fortuna e o Tempo errado,
Que do contentamento são espias.

Luís Vaz de Camões

segunda-feira, 11 de junho de 2007

Quando me quer enganar

Quando me quer enganar
A minha bela perjura,
Pera mais me confirmar
O que quer certificar,
Pelos seus olhos mo jura.
Como meu contentamento
Todo se rege por eles,
Imagina o pensamento
Que se faz agravo a eles
Não crer tão grão juramento.

Porém, como em casos tais
Ando já visto e corrente,
Sem outros certos sinais,
Quanto me ela jura mais,
Tanto mais cuido que mente.
Então, vendo-lhe ofender
Uns tais olhos como aqueles,
Deixo-me antes tudo crer,
Só pela não constranger
A jurar falso por eles.

Luís Vaz de Camões

domingo, 27 de maio de 2007

Antero de Quental (1842 - 1891)


Antero Tarquínio de Quental nasceu em Ponta Delgada, na ilha de S. Miguel - Açores, no dia 18 de Abril de 1842.

Em 1852, com 13 anos, vem com a sua mãe, para Lisboa.

Desde jovem que se destacou pelas opiniões revolucionárias e pela forma de estar na vida.
Lutador e muito congruente com os seus ideais socialistas.

Antero de Quental espalhou saber pela poesia, filosofia e política.

Em Julho de 1858 matriculou-se na Faculdade de Direito, de Coimbra, onde brilhou como líder estudantil. Concluiu o curso em Julho de 1864.

Em 1865, foi um dos principais envolvidos na polémica conhecida por Questão Coimbrã, em que humilhou António Feliciano de Castilho, seu antigo professor e crítico literário.
A polémica só terminou com um duelo entre Antero de Quental e Ramalho Ortigão travado, a 6 de Fevereiro de 1866, no Jardim de Arca d'Água, no Porto, que se saldou por ferimentos ligeiros.

Ainda em 1866 foi viver em Lisboa, onde experimentou a vida de operário, trabalhando como tipógrafo. Uma profissão que exerceu também em Paris, em Janeiro e Fevereiro de 1867. Em 1868 regressou a Lisboa, onde formou o Cenáculo, de que fizeram parte, entre outros, Eça de Queirós e Ramalho Ortigão.


Foi o guia espiritual da geração de 70, um agitador político a “tempo inteiro”, que se afirmou pelo desejo de intervenção e renovação da vida política e cultural portuguesa.


Em 1874 adoeceu de psicose maníaco-depressiva (doença bipolar), que desde então o afligiu. Foi convidado pelo Partido Republicano para candidatar-se como deputado, mas teve de recusar.

Antero de Quental herdou em 1873 uma quantia considerável de dinheiro, o que lhe permitiu viver desafogadamente, dos rendimentos dessa fortuna.

Em 1890, devido à reacção nacional contra o ultimato inglês, de 11 de Janeiro, aceita presidir à Liga Patriótica do Norte, mas a existência da Liga é efémera.
Quando regressou a Lisboa, em Maio de 1891, instalou-se em casa da irmã, Ana de Quental. Neste momento o seu estado de depressão era permanente. Passado um mês, em Junho de 1891, regressa a Ponta Delgada, acabando por suicidar-se dia 11 de Setembro de 1891, com um tiro na cabeça, disparado num banco de jardim.

Para Antero de Quental, os ideais da fraternidade e solidariedade não poderiam ser em vão. Foi dos primeiros a trazer o socialismo, o republicanismo e o marxismo para a discussão pública.

A SUA OBRA

A poesia de Antero de Quental apresenta três faces distintas:

A das experiências juvenis, em que coexistem diversas tendências
A da poesia militante, empenhada em agir como “voz da revolução”
E a da poesia de tom metafísico, voltada para a expressão da angustia de quem busca um sentido para a existência.

A oscilação entre uma poesia de combate, dedicada ao elogio da acção e da capacidade humana, e uma poesia intimista, direcionada para a análise de uma individualidade angustiada, parece ter sido constante na obra madura de Antero de Quental.


OS SONETOS

Antero de Quental atinge um bom grau de elaboração nos seus sonetos, que são considerados dos melhores da língua portuguesa e comparados aos de Camões e aos de Bocage.

Há, na verdade, alguns pontos comuns (estilísticos e temáticos) entre estes três poetas:

Os sonetos de Antero de Quental têm um inegável sabor clássico, quer na adjectivação e na sua musicalidade equilibrada, quer na análise das questões universais que afligem o homem.



Sonetos de Antero de Quental

À virgem santíssima
Abnegação
Acordando
Ad Amicos
A fada negra
A idéia
A João de Deus
Amaritudo
Amor Vivo
Anima Mea
Aparição
A Santos Valente
Aspiração
A Sulamisa
A uma mulher
A um crucifixo
A um poeta
Com os mortos
Comunhão
Consulta
Contemplação
Das Unnennbare
Desesperança
Despondency
Diálogo
Disputa em família
Divina Comédia

Elogio da morte
Em viagem
Enquanto outros combatem
Entre Sombras
Espectros
Espiritualismo
Estoicismo
Evolução
Hino à razão
Hino da manhã
Homo
Ideal
Idílio

Ignoto Deo
Ignotus
Jura
Justitia Mater
Mais luz !
Lacrimae Rerum
Lamento
Logos
Luta
Mãe
Mea culpa
Metempsicose
Mors-Amor
Mors Liberatrix
Na capela
Na mão de Deus
Não me fales de glória: é outro o altar
Não busco n`esta vida glória ou fama
Nirvana
No céu, se existe um céu para quem chora
No circo
No turbilhão
Noturno

Nox
Oceano Nox
O convertido
O inconsciente
O palácio da ventura
Os captivos
O que diz a morte
Os vencidos
Palavras dum certo morto
Pequenina
Porque descrês, mulher, do amor, da vida
Poz-te Deus sobre a fronte a mão piedosa
Psalmo
Quia aeternus
Quinze anos
Redenção
Se comparo poder ou ouro ou fama
Se é lei, que rege o escuro pensamento
Sempre o futuro, sempre ! E o presente
Sepultura romântica
Só ! - Ao ermita sozinho na montanha
Solemnia Verba
Só males são reais, só dor existe
Sonho
Sonho Oriental
Tese e antítese
Tormento do ideal
Transcendentalismo
Uma amiga
Velut Umbra
Visão
Visita
Voz do Outono
Voz interior

Este artigo publica-se sob a licença GNU, baseado num artigo da Wikipédia (adaptado).

terça-feira, 15 de maio de 2007

A fada negra

Uma velha de olhar mudo e frio,
De olhos sem cor, de lábios glaciais,
Tomou-me nos seus braços sepulerais.
Tomou-me sobre o seio ermo e vazio.

E beijou-me em silêncio, longamente,
Longamente me uniu à face fria...
Oh! como a minha alma se estorcia
Sob os seus beijos, dolorosamente!

Onde os lábios pousou, a carne logo
Mirrou-se e encaneceu-se-me o cabelo,
Meus ossos confrangeram-se. O gelo
Do seu bafo secava mais que o fogo.

Com seu olhar sem cor, que me fitava,
A Fada negra me qualhou o sangue.
Dentro em meu coração inerte e exangue
Um silêncio de morte se engolfava.

E volvendo em redor olhos absortos,
O mundo pareceu-me uma visão,
Um grande mar de nevoa, de ilusão,
E a luz do sol como um luar de mortos...

Como o espectro d'um mundo já defunto,
Um farrapo de mundo, nevoento,
Ruina aerea que sacode o vento,
Sem cor, sem consistencia, sem conjunto...

E quanto adora quem adora o mundo,
Brilho e ventura, esperar, sorrir,
Eu vi tudo oscilar, pender, cair,
Inerte e já da cor d'um moribundo.

Dentro em meu coração, n'esse momento,
Fez-se um buraco enorme — e n'esse abismo
Senti ruir não sei que cataclismo,
Como um universal desabamento...

Razão! velha de olhar agudo e cru
E de halito mortal mais do que a peste!
Pelo beijo de gelo que me deste,
Fada negra, bemdita sejas tu!

Bendita sejas tu pela agonia
E o luto funeral d'aquela hora
Em que eu vi baquear quanto se adora,
Vi de que noite é feita a luz do dia!

Pelo pranto e as torturas benfazejas
Do desengano... pela paz austera
D'um morto coração, que nada espera,
Nem deseja tambem... bendita sejas!

1860 — 1862 Antero de Quental

domingo, 13 de maio de 2007

Soneto 92

Faz teu pior pra mim te afastares,
Enquanto eu viva tu és sempre meu,
Não há mais vida se tu não ficares,
Pois ela vive desse amor que é teu.

Por que hei de temer grande traição
Se tem fim minha vida com a menor;
De vida abençoada eu sou, então,
Por não estar preso ao teu cruel humor.

Tua mente inconstante não me afeta,
Minha vida é ligada à tua sorte;
Como é feliz o fato que decreta
Que sou feliz no amor, feliz na morte!

Porém que graça escapa de temer?
Podes ser falso e eu sequer saber.

William Shakespeare traduzido no site www. starnews2001.com.br

Soneto 91

Alguns cantam seu berço, alguns talento,
Alguns riqueza, alguns seu corpo são,
Alguns as vestes, mesmo de um momento,
Alguns o seu falcão, cavalo ou cão;

Toda emoção traz seu próprio prazer,
Que uma grande alegria neste tem;
Mas não sei desse meu gáudio fazer,
Pois eu supero a todos com um só bem.

Mais que berço pra mim é o teu amor,
Mais rico que a riqueza, que tecido,
Maior do que animal é o teu valor;
Tendo a ti sou por tudo envaidecido:

Sou desgraçado só no tu poderes
Levando tudo, infeliz me fazeres.

William Shakespeare, traduzido no site www. starnews2001.com.br

Soneto 35

Não chores mais o erro cometido;
Na fonte, há lodo; a rosa tem espinho;
O sol no eclipse é sol obscurecido;
Na flor também o inseto faz seu ninho;

Erram todos, eu mesmo errei já tanto,
Que te sobram razões de compensar
Com essas faltas minhas tudo quanto
Não terás tu somente a resgatar;

Os sentidos traíram-te, e meu senso
De parte adversa é mais teu defensor,
Se contra mim te excuso, e me convenço
Na batalha do ódio com o amor:

Vítima e cúmplice do criminoso,
Dou-me ao ladrão amado e amoroso.

William Shakespeare, traduzido no site www. starnews2001.com.br

sexta-feira, 11 de maio de 2007

Soneto 116

De almas sinceras a união sincera
Nada há que impeça: amor não é amor
Se quando encontra obstáculos se altera
Ou se vacila ao mínimo temor.

Amor é um marco eterno, dominante,
Que encara a tempestade com bravura;
É astro que norteia a vela errante
Cujo valor se ignora, lá na altura.

Amor não teme o tempo, muito embora
Seu alfanje não poupe a mocidade;
Amor não se transforma de hora em hora,

Antes se afirma, para a eternidade.
Se isto é falso, e que é falso alguém provou,
Eu não sou poeta, e ninguém nunca amou.

William Shakespeare - Tradução de Bárbara Heliodora

O ledo passarinho, que gorjeia

O ledo passarinho, que gorjeia
D'alma exprimindo a cândida ternura,
O rio transparente, que murmura,
E por entre pedrinhas serpenteia:

O Sol, que o céu diáfano passeia,
A Lua, que lhe deve a formosura,
O sorriso da aurora alegre e pura,
A rosa, que entre os zéfiros ondeia;

A serena, amorosa Primavera,
O doce autor das glorias que consigo,
A deusa das paixões, e de Cítera:

Quanto digo, meu bem, quanto não digo,
Tudo em tua presença degenera,
Nada se pode comparar contigo.

Bocage

quinta-feira, 15 de março de 2007

Soneto do maior Amor

Maior amor nem mais estranho existe
Que o meu, que não sossega a coisa amada
E quando a sente alegre, fica triste
E se a vê descontente, dá risada.

E que só fica em paz se lhe resiste
O amado coração, e que se agrada
Mais da eterna aventura em que persiste
Que de uma vida mal aventurada.

Louco amor meu, que quando toca, fere
E quando fere vibra, mas prefere
Ferir a fenecer - e vive a esmo

Fiel à sua lei de cada instante
Desassombrado, doido, delirante
Numa paixão de tudo e de si mesmo.

Vinicius de Moraes

Soneto do Amor total

Amo-te tanto meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei-de morrer de amar mais do que pude.

Vinicius de Moraes

Soneto do Amor demais

Não, já não amo mais os passarinhos
A quem, triste, contei tanto segredo
Nem amo as flores despertadas cedo
Pelo vento orvalhado dos caminhos.

Não amo mais as sombras do arvoredo
Em seu suave entardecer de ninhos
Nem amo receber outros carinhos
E até de amar a vida tenho medo.

Tenho medo de amar o que de cada
Coisa que der resulte empobrecida
A paixão do que se der à coisa amada

E que não sofra por desmerecida
Aquela que me deu tudo na vida
E que de mim só quer amor - mais nada.

Vinicius de Moraes

Soneto do Amor como um rio

Este infinito amor que um ano faz
Que é maior do que o tempo e do que tudo
Este amor que é real, e que, contudo,
Eu já não cria que existisse mais.

Este amor que surgiu insuspeitado
E que dentro do drama fez-se em paz
Este amor que é o túmulo onde jaz
Meu corpo para sempre sepultado.

Este amor meu é como um rio; um rio
Noturno, interminável e tardio
A deslizar macio pelo ermo

E que em seu curso sideral me leva
Iluminado de paixão na treva
Para o espaço sem fim de um mar sem termo.

Vinicius de Moraes

Soneto do amigo

Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado.

É bom sentá-lo novamente ao lado
Com os olhos que contem o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.

Um bicho igual à mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com meu próprio engano.

O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica...

Vinicius de Moraes

Soneto de Luz e Treva

Ela tem uma graça de pantera
no andar bem comportado de menina
no molejo em que vem sempre se espera
que de repente ela lhe salte em cima

Mas súbito renega a bela e a fera
prende o cabelo, vai para a cozinha
e de um ovo estrelado na panela
ela com clara e gema faz o dia

Ela é de Capricórnio, eu sou de Libra
eu sou o Oxalá velho, ela é Inhansã
a mim me enerva o ardor com que ela vibra

E que a motiva desde de manhã.
- Como é que pode, digo-me com espanto
a luz e a treva se quererem tanto...

Vinicius de Moraes

Soneto de devoção

Essa mulher que se arremessa, fria
E lúbrica aos meus braços, e nos seios
Me arrebata e me beija e balbucia
Versos, votos de amor e nomes feios.

Essa mulher, flor de melancolia
Que se ri dos meus pálidos receios
A única entre todas a quem dei os
Carinhos que nunca a outra daria.

Essa mulher que a cada amor proclama
A miséria e a grandeza de quem ama
E guarda a marca dos meus dentes nela.

Essa mulher e um mundo! - uma cadela
Talvez... - mas na moldura de uma cama
Nunca mulher nenhuma foi tão bela.

Vinicius de Moraes

Soneto de Agosto

Tu me levaste eu fui... Na treva, ousados
Amamos, vagamente surpreendidos
Pelo ardor com que estávamos unidos
Nós que andávamos sempre separados.

Espantei-me, confesso-te, dos brados
Com que enchi teus patéticos ouvidos
E achei rude o calor dos teus gemidos
Eu que sempre os julgara desolados.

Só assim arrancara a linha inútil
Da tua eterna túnica inconsútil...
E para a glória do teu ser mais franco

Quisera que te vissem como eu via
Depois, à luz da lâmpada macia
O púbis negro sobre o corpo branco.

Vinicius de Moraes

Soneto da rosa tardia

Como uma jovem rosa, a minha amada...
Morena, linda, esgalga, penumbrosa
Parece a flor colhida, ainda orvalhada
Justo no instante de tornar-se rosa.

Ah, porque não a deixas intocada
Poeta, tu que es pai, na misteriosa
Fragrância do seu ser, feito de cada
Coisa tão frágil que perfaz a rosa...

Mas (diz-me a Voz) por que deixa-la em haste
Agora que ela e' rosa comovida
De ser na tua vida o que buscaste

Tão dolorosamente pela vida ?
Ela e' rosa, poeta... assim se chama...
Sente bem seu perfume... Ela te ama...

Vinicius de Moraes

Soneto da mulher ao Sol

Uma mulher ao sol - eis todo o meu desejo
Vinda do sal do mar, nua, os braços em cruz
A flor dos lábios entreaberta para o beijo
A pele a fulgurar todo o pólen da luz.

Uma linda mulher com os seios em repouso
Nua e quente de sol - eis tudo o que eu preciso
O ventre terso, o pelo úmido, e um sorriso
À flor dos lábios entreabertos para o gozo.

Uma mulher ao sol sobre quem me debruce
Em quem beba e a quem morda, com quem me lamente
E que ao se submeter se enfureça e soluce

E tente me expelir, e ao me sentir ausente
Me busque novamente - e se deixes a dormir
Quando, pacificado, eu tiver de partir...

Vinicius de Moraes

Soneto da Lua

Por que tens, por que tens olhos escuros
E mãos languidas, loucas, e sem fim
Quem és, quem és tu, não eu, e estás em mim
Impuro, como o bem que está nos puros ?

Que paixão fez-te os lábios tão maduros
Num rosto como o teu criança assim
Quem te criou tão boa para o ruím
E tão fatal para os meus versos duros?

Fugaz, com que direito tens-me pressa
A alma, que por ti soluça nua
E não és Tatiana e nem Teresa:

E és tão pouco
a mulher que anda na rua
Vagabunda, patética e indefesa.

Vinicius de Moraes

Soneto da ilha

Eu deitava na praia, a cabeça na areia
Abria as pernas aos alísios e ao luar
Tonto de maresia; e a mão da maré cheia
Vinha coçar meus pés com seus dedos de mar.

Longos êxtases tinha; amava a Deus em ânsia
E a uma nudez qualquer ávida de abandono
Enquanto ao longe a clarineta da distância
Era tambêm um mar que me molhava o sono.

E adormecia assim, sonhando, vendo e ouvindo
Pulos de peixes, gritos frouxos, vozes rindo
E a lua virginal arder no plexo

Estelar, e o marulho das ondas sucessivas
Da monção, até que alguma entre as mais vivas
Mansa, viesse desaguar pelo meu sexo.

Vinicius de Moraes

Soneto da hora final

Será assim, amiga: um certo dia
Estando nós a contemplar o poente
Sentiremos no rosto, de repente,
O beijo leve de uma aragem fria.

Tu me olharás silenciosamente
E eu te olharei também, com nostalgia
E partiremos, tontos de poesia
Para a porta de trevas, aberta em frente.

Ao transpor as fronteiras do segredo
Eu, calmo, te direi: - Não tenhas medo
E tu, tranqüila, me dirás: - Sê forte.

E como dois antigos namorados
Noturnamente tristes e enlaçados
Nós entraremos nos jardins da morte.

Vinicius de Moraes

Soneto de Criação

Deus te fez numa fôrma pequenina
De uma argila bem doce e bem morena
Deu-te uns olhos minúsculos de china
Que parecem ter sempre um olhar de pena.

Banhou-te o corpo numa fonte fina
Entre os rubores de uma aurora amena
E por criar-te assim, leve e pequena
Soprou-te uma alma calma, cálida e divina.

Tão formosa te fez, tão soberana
Que dar-te aos anjos por irmã queria
Mas ao plasmar-te a carne predileta

Deus, comovido, te criara humana
E para tua justa moradia
Atirou-te nos braços do poeta.

Vinicius de Moraes

Soneto da desesperança

De não poder viver sua esperança
Transformou-a em estátua e deu-lhe um nicho
Secreto, onde ao sabor do seu capricho
Fugisse a vê-la como uma criança.

Tão cauteloso fez-se em seus cuidados
De não mostrá-la ao mundo, que a queria
Que por zelo demais, ficaram um dia
Irremediavelmente separados.

Mas eram tais os seus ciúmes dela
Tão grande a dor de não poder vivê-la,
Que em desespero, resolveu-se: - Mato-a!

E foi assim que triste como um bicho
Uma noite subiu até o nicho
E abriu o coração diante da estátua.

Vinicius de Moraes

Soneto a quatro mãos

Tudo de amor que existe em mim foi dado
Tudo que fala em mim de amor foi dito
Do nada em mim o amor fez o infinito
Que por muito tornou-me escravizado.

Tão prodígo de amor fiquei coitado
Tão facil para amar fiquei proscrito
Cada voto que fiz ergueu-se em grito
Contra o meu próprio dar demasiado.

Tenho dado de amor mais que coubesse
Nesse meu pobre coração humano
Desse eterno amor meu antes não desse.

Pois se por tanto dar me fiz engano
Melhor fora que desse e recebesse
Para viver da vida o amor sem dano.

Vinicius de Moraes

Soneto da intimidade

Nas tardes da fazenda há muito azul demais.
Eu saio às vezes, sigo pelo pasto agora
Mastigando um capim, o peito nu de fora
No pijama irreal de há três anos atrás.

Desço o rio no vau dos pequenos canais
Para ir beber na fonte a água fria e sonora
E se encontro no mato o rubro de uma amora
Vou cuspindo-lhe o sangue em torno dos currais.

Fico ali respirando o cheiro bom do estrume
Entre as vacas e os bois que me olham sem ciúme
E quando por acaso uma mijada ferve

Seguida de um olhar não sem malícia e verve
Nós todos, animais sem comoção nenhuma
Mijamos em comum numa festa de espuma.

Vinicius de Moraes

Allegro

Sente como vibra
Doidamente em nós
Um vento feroz
Estorcendo a fibra

Dos caules informes
E as plantas carnívoras
De bocas enormes
Lutam contra as víboras

E os rios soturnos
Ouve como vazam
A água corrompida

E as sombras se casam
Nos raios noturnos
Da lua perdida . . .

Vinicius de Moraes

Soneto da fidelidade

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa (me) dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Vinicius de Moraes

Soneto de véspera

Quando chegares e eu te vir chorando
De tanto te esperar, que te direi?
E da angústia de amar-te, te esperando
Reencontrada, como te amarei?

Que beijo teu de lágrima terei
Para esquecer o que vivi lembrando
E que farei da antiga mágoa quando
Não puder te dizer por que chorei?

Como ocultar a sombra em mim suspensa
Pelo martírio da memória imensa
Que a distância criou - fria de vida

Imagem tua que eu compus serena
Atenta ao meu apelo e à minha pena
E que quisera nunca mais perdida...

Vinicius de Moraes

Soneto da separação

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.

Vinicius de Moraes

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

Em viagem

Pelo caminho estreito, aonde a custo
Se encontra uma só flor, ou ave, ou fonte,
Mas só bruta aridez de aspero monte
E os soes e a febre do areal adusto,

Pelo caminho estreito entrei sem susto
E sem susto encarei, vendo-os defronte,
Phantasmas que surgiam do horizonte
A accommetter meu coração robusto...

Quem sois vós, peregrinos singulares?
Dor, Tedio, Desenganos e Pesares...
Atraz d'eles a Morte espreita ainda...

Conheço-vos. Meus guias derradeiros
Sereis vós. Silenciosos companheiros,
Bemvindos, pois, e tu, Morte, bemvinda!

Antero de Quental

Espectros

Espectros que velaes, emquanto a custo
Adormeço um momento, e que inclinados
Sobre os meus somnos curtos e cançados
Me encheis as noites de agonia e susto!...

De que me vale a mim ser puro e justo,
E entre combates sempre renovados
Disputar dia a dia á mão dos Fados
Uma parcela do saber augusto,

Se a minh'alma ha-de ver, sobre si fitos,
Sempre esses olhos tragicos, malditos!
Se até dormindo, com angustia immensa,

Bem os sinto verter sobre o meu leito,
Uma a uma verter sobre o meu peito
As lagrimas geladas da descrença!

Antero de Quental

Diálogo

A cruz dizia á terra onde assentava,
Ao vale obscuro, ao monte aspero e mudo:
— Que és tu, abysmo e jaula, aonde tudo
Vive na dor e em lucta cega e brava?

Sempre em trabalho, condemnada escrava.
Que fazes tu de grande e bom, contudo?
Resignada, és só lodo informe e rudo;
Revoltosa, és só fogo e horrida lava...

Mas a mim não ha alta e livre serra
Que me possa igualar!.. amor, firmeza,
Sou eu só: sou a paz, tu és a guerra!

Sou o espirito, a luz!.. tu és tristeza,
Oh lodo escuro e vil! — Porêm a terra
Respondeu: Cruz, eu sou a Natureza!

Antero de Quental

Disputa em família

Dixit insipiens in corde suo: non est Deus.

I
Sai das nuvens, levanta a fronte e escuta
O que dizem teus filhos rebelados,
Velho Jeová de longa barba hirsuta,
Solitário em teus Céus acastelados:

« — Cessou o império enfim da força bruta!
Não sofreremos mais, emancipados,
O tirano, de mão tenaz e astuta,
Que mil anos nos trouxe arrebanhados!

Enquanto tu dormias impassível,
Topámos no caminho a liberdade
Que nos sorrio com gesto indefinível...

Já provámos os frutos da verdade...
Ó Deus grande, ó Deus forte, ó Deus terrível.
Não passas d'uma vã banalidade! — »

II
Mas o velho tirano solitário,
De coração austero e endurecido,
Que um dia, de enjoado ou distraido,
Deixou matar seu filho no Calvário,

Sorriu com rir extranho, ouvindo o vario
Tumultuoso côro e alarido
Do povo insipiente, que, atrevido,
Erguia a voz em grita ao seu sacrário:

« — Vanitas vanitatum! (disse). É certo
Que o homem vão medita mil mudanças,
Sem achar mais do que erro e desacerto.

Muito antes de nascerem vossos pais
D'um barro vil, ridículas crianças,
Sabia em tudo isso... e muito mais! — »

Antero de Quental

Das Unnennbare

Oh chimera, que passas embalada
Na onda de meus sonhos dolorosos,
E roças co'os vestidos vaporosos
A minha fronte pálida e cançada!

Leva-te o ar da noite socegada...
Pergunto em vão, com olhos anciosos,
Que nome é que te dão os venturosos
No teu paiz, misteriosa fada!

Mas que destino o meu! e que luz baça
A d'esta aurora, igual á do sol posto,
Quando só nuvem lívida esvoaça!

Que nem a noite uma ilusão consinta!
Que só de longe e em sonhos te presinta...
E nem em sonhos possa ver-te o rosto!

Antero de Quental

Desesperança

Vai-te na aza negra da desgraça,
Pensamento de amor, sombra d'uma hora,
Que abracei com delírio, vai-te, embora,
Como nuvem que o vento impele... e passa.

Que arrojemos de nós quem mais se abraça,
Com mais ancia, á nossa alma! e quem devora
D'essa alma o sangue, com que vigora,
Como amigo comungue á mesma taça!

Que seja sonho apenas a esperança,
Enquanto a dor eternamente assiste.
E só engano nunca a desventura!

Se era silêncio sofrer fora vingança!..
Envolve-te em ti mesma, ó alma triste,
Talvez sem esperança haja ventura!

Antero de Quental

Divina Comédia

Erguendo os braços para o céu distante
E apostrofando os deuses invisíveis,
Os homens clamam: — «Deuses impassíveis,
A quem serve o destino triumfante,

Porque é que nos criastes?! Incessante
Corre o tempo e só gera, inestinguíveis,
Dor, pecado, ilusão, lutas horríveis,
N'um turbilhão cruel e delirante...

Pois não era melhor na paz clemente
Do nada e do que ainda não existe,
Ter ficado a dormir eternamente?

Porque é que para a dor nos evocastes?»
Mas os deuses, com voz inda mais triste,
Dizem: — «Homens! por que é que nos criastes?»

Antero de Quental

Consulta

Chamei em volta do meu frio leito
As memórias melhores de outra idade,
Formas vagas, que às noites, com piedade,
Se inclinam, a espreitar, sobre o meu peito...

E disse-lhes: No mundo imenso e estreito
Valia a pena, acaso, em ansiedade
Ter nascido? Dizei-mo com verdade,
Pobres memórias que eu ao seio estreito.

Mas elas perturbaram-se - coitadas!
E empalideceram, contristadas,
Ainda a mais feliz, a mais serena...

E cada uma delas, lentamente,
Com um sorriso mórbido, pungente,
Me respondeu: - Não, não valia a pena!

Antero de Quental

Comunhão

Reprimirei meu pranto!... Considera
Quantos, minh'alma, antes de nós vagaram,
Quantos as mãos incertas levantaram
Sob este mesmo céu de luz austera!...

— Luz morta! amarga a própria primavera! —
Mas seus pacientes corações lutaram,
Crentes só por instinto, e se apoiaram
Na obscura e heróica fé, que os retempera...

E sou eu mais do que eles? igual fado
Me prende á lei de ignotas multidões. —
Seguirei meu caminho confiado,

Entre esses vultos mudos, mas amigos,
Na humilde fé de obscuras gerações,
Na comunhão dos nossos paes antigos.

Antero de Quental

Aparição

Um dia, meu amor (e talvez cedo,
Que já sinto estalar-me o coração!)
Recordarás com dor e compaixão
As ternas juras que te fiz a medo...

Então, da casta alcova no segredo,
Da lamparina ao tremulo clarão,
Ante ti surgirei, espectro vão,
Larva fugida ao sepulcral degredo...

E tu, meu anjo, ao ver-me, entre gemidos
E afflictos ais, estenderás os braços
Tentando segurar-te aos meus vestidos...

— «Ouve! espera!» — Mas eu, sem te escutar,
Fugirei, como um sonho, aos teus abraços
E como fumo sumir-me-hei no ar!

Antero de Quental

Amor vivo

Amar! mas d'um amor que tenha vida...
Não sejam sempre tímidos harpejos,
Não sejam só delirios e desejos
D'uma douda cabeça escandecida...

Amor que vive e brilhe! luz fundida
Que penetre o meu ser — e não só beijos
Dados no ar — delírios e desejos —
Mas amor... dos amores que têm vida...

Sim, vivo e quente! e já a luz do dia
Não virá dissipa-lo nos meus braços
Como névoa da vaga fantasia...

Nem murchará do sol á chama erguida...
Pois que podem os astros dos espaços
Contra débeis amores... se têm vida?

Antero de Quental

Ad amicos

Em vão lutamos. Como névoa baça,
A incerteza das coisas nos envolve.
Nossa alma, em quanto cria, em quanto volve,
Nas suas próprias redes se embaraça.

O pensamento, que mil planos traça,
É vapor que se esvae e se dissolve;
E a vontade ambiciosa, que resolve,
Como onda entre rochedos se espedaça.

Filhos do Amor, nossa alma é como um hino
À luz, à liberdade, ao bem fecundo,
Prece e clamor d'um presentir divino;

Mas n'um deserto só, árido e fundo,
Ecoam nossas vozes, que o Destino
Paira mudo e impassível sobre o mundo.

Antero de Quental

Acordando

Em sonho, às vezes, se o sonhar quebranta
Este meu vão sofrer; esta agonia,
Como sobe cantando a cotovia,
Para o céu a minh'alma sobe e canta.

Canta a luz, a alvorada, a estrela santa,
Que ao mundo traz piedosa mais um dia...
Canta o enlevo das cousas, a alegria
Que as penetra de amor e as alevanta...

Mas, de repente, um vento humido e frio
Sopra sobre o meu sonho: um calafrio
Me acorda. — A noite é negra e muda: a dor

Cá vela, como d'antes, ao meu lado...
Os meus cantos de luz, anjo adorado,
São sonho só, e sonho o meu amor!

Antero de Quental

Abnegação

Chovam lírios e rosas no teu colo!
Chovam hínos de glória na tua alma!
Hinos de glória e adoração e calma,
Meu amor, minha pomba e meu consolo!

Dê-te estrelas o céu, flores o solo,
Cantos e aroma o ar e sombra a palmar.
E quando surge a lua e o mar se acalma,
Sonhos sem fim seu preguiçoso rolo!

E nem sequer te lembres de que eu choro...
Esquece até, esquece, que te adoro...
E ao passares por mim, sem que me olhes,

Possam das minhas lágrimas cruéis
Nascer sob os teus pés flores fiéis,
Que pises distraida ou rindo esfolhes!

Antero de Quental

A uma mulher

Para tristezas, para dor nasceste.
Podia a sorte por-te o berço estreito
N'algum palácio e ao pé de régio leito,
Em vez d'este areal onde cresceste:

Podia abrir-te as flores — com que veste
As ricas e as felizes — n'esse peito:
Fazer-te... o que a Fortuna ha sempre feito...
Terias sempre a sorte que tiveste!

Tinhas de ser assim... Teus olhos fitos,
Que não são d'este mundo e onde eu leio
Uns mistérios tão tristes e infinitos,

Tua voz rara e esse ar vago e esquecido,
Tudo me diz a mim, e assim o creio,
Que para isto só tinhas nascido!

Antero de Quental

A idéia

I
Pois que os deuses antigos e os antigos
Divinos sonhos por esse ar se somem,
E á luz do altar da fé, em Templo ou Dolmen,
A apagaram os ventos inimigos;

Pois que o Sinai se enubla e os seus pacigos,
Secos à mingua de água, se consomem,
E os profetas d'outrora todos dormem
Esquecidos, em terra sem abrigos;

Pois que o céu se fechou e já não desce
Na escada de Jacob (na de Jesus!)
Um só anjo, que aceite a nossa prece;

É que o lírio da Fé já não renasce:
Deus tapou com a mão a sua luz
E ante os homens velou a sua face!

II
Pálido Cristo, oh condutor divino!
A custo agora a tua mão tão doce
Incerta nos conduz, como se fosse
Teu grande coração perdendo o tino...

A palavra sagrada do Destino
Na boca dos oraculos secou-se:
A luz da sarça ardente dissipou-se
Ante os olhos do vago peregrino!

Ante os olhos dos homens — porque o mundo
Desprendido rolou das mãos de Deus,
Como uma cruz das mãos d'um moribundo!

Porque já se não lê seu nome escrito
Entre os astros... e os astros, como ateus,
Já não querem mais lei que o infinito!

III
Força é pois ir buscar outro caminho!
Lançar o arco de outra nova ponte
Por onde a alma passe — e um alto monte
Aonde se abre á luz o nosso ninho.

Se nos negam aqui o pão e o vinho,
Avante! é largo, imenso esse horizonte...
Não, não se fecha o mundo! e além, defronte,
E em toda a parte ha luz, vida e carinho!

Avante! os mortos ficarão sepultos...
Mas os vivos que sigam, sacudindo
Como o pó da estrada os velhos cultos!

Doce e brando era o seio de Jesus...
Que importa? havemos de passar, seguindo,
Se além do seio d'ele houver mais luz!

IV
Conquista pois sósinho o teu futuro,
Já que os celestes guias te hão deixado,
Sobre uma terra ignota abandonado,
Homem — proscrito rei — mendigo escuro!

Se não tens que esperar do céo (tão puro,
Mas tão cruel!) e o coração magoado
Sentes já de ilusões desenganado,
Das ilusões do antigo amor perjuro:

Ergue-te, então, na magestade estoica
D'uma vontade solitaria e altiva,
N'um esforço supremo de alma heroica!

Faze um templo dos muros da cadeia,
Prendendo a imensidade eterna e viva
No círculo de luz da tua Idéia!

V
Mas a Idéia quem é? quem foi que a viu,
Jamais, a essa encoberta peregrina?
Quem lhe beijou a sua mão divina?
Com seu olhar de amor quem se vestiu?

Pálida imagem, que a água de algum rio,
Refletindo, levou... incerta e fina
Luz, que mal bruxulêa pequenina...
Nuvem, que trouxe o ar, e o ar sumio...

Estendei, estendei-lhe os vossos braços,
Magros da febre d'um sonhar profundo,
Vós todos que a seguis n'esses espaços!

E entanto, oh alma triste, alma chorosa,
Tu não tens outra amante em todo o mundo
Mais que essa fria virgem desdenhosa!

VI
Outra amante não ha! não ha na vida
Sombra a cobrir melhor nossa cabeça,
Nem balsamo mais doce, que adormeça
Em nós a antiga, a secular ferida!

Quer fuja esquiva, ou se ofereça erguida,
Como quem sabe amar e amar confessa,
Quer nas nuvens se esconda ou apareça,
Será sempre ela a esposa prometida!

Nossos desejos para ti, oh fria,Se erguem,
bem como os braços do proscrito
Para as bandas da pátria, noite e dia.

Podes fugir... nossa alma, delirante,
Seguir-te-ha a travéz do infinito,
Até voltar comtigo, triunfante!

VII
Oh! o noivado bárbaro! o noivado
Sublime! aonde os céus, os céus ingentes,
Serão leito de amor, tendo pendentes
Os astros por docel e cortinado!

As bodas do Desejo, embriagado
De ventura, a final! visões ferventes
De quem nos braços vae de ideais ardentes
Por espaços sem termo arrebatado!

Lá, por onde se perde a fantasia
No sonho da beleza: lá, aonde
A noite tem mais luz que o nosso dia;

Lá, no seio da eterna claridade,
Aonde Deus á humana voz responde;
É que te havemos abraçar, Verdade!

VIII
Lá! Mas aonde é lá? — Espera,
Coração indomado! o céu, que anceia
A alma fiel, o céo, o céu da Idéia.
Em vão o buscas n'essa imensa esfera!

O espaço é mudo: a imensidade austera
De balde noite e dia incendeia...
Em nenhum astro, em nenhum sol se alteia
A rosa ideal da eterna primavera!

O Paraíso e o templo da Verdade,
Oh mundos, astros, sóis, constelações!
Nenhum de vós o tem na imensidade...

A Idéia, o sumo Bem, o Verbo, a Essência,
Só se revela aos homens e ás nações
No céo incorruptível da Consciência!

Antero de Quental

A Sulamisa

Ego dormio, et cor meum vigilat. CÂNTICO DOS CÂNTICOS.

Quem anda lá por fora, pela vinha
Na sombra do luar meio cacoberto,
Sutil nos passos e espreitando incerto,
Com brando respirar de criancinha?

Um sonho me acordou... não sei que tinha...
Pareceu-me senti-lo aqui tão perto...
Seja alta noite, seja n'um deserto,
Quem ama até em sonhos adivinha...

Moças da minha terra, ao meu amado
Correi, dizei-lhe que eu dormia agora,
Mas que póde ir contente e descançado,

Pois se tão cedo adormeci, conforme
É meu costume, olhae, dormia embora,
Porque o meu coração é que não dorme...

Antero de Quental

A Santos Valente

Estreita é do prazer na vida a taça:
Largo, como o oceano é largo e fundo,
E como ele em venturas infecundo,
O cális amargoso da desgraça.

E contudo nossa alma, quando passa
incerta peregrina, pelo mundo,
Prazer só pede à vida, amor fecundo,
É com essa esperança que se abraça.

É lei de Deus este aspirar imenso...
E contudo a ilusão impoz à vida.
E manda buscar luz e dá-nos treva!

Ah! se Deus acendeu um foco intenso
De amor e dor em nós, na ardente lida,
Porque a miragem cria... ou porque a leva?

Antero de Quental

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

O inconsciente

O Espectro familiar que anda commigo,
Sem que podesse ainda ver-lhe o rosto,
Que umas vezes encaro com desgosto
E outras muitas ancioso espreito e sigo.

É um espectro mudo, grave, antigo,
Que parece a conversas mal disposto...
Ante esse vulto, ascetico e composto
Mil vezes abro a bocca... e nada digo.

Só uma vez ousei interrogal-o:
Quem és (lhe perguntei com grande abalo)
Phantasma a quem odeio e a quem amo?

Teus irmãos (respondeu) os vãos humanos,
Chamam-me Deus, ha mais de dez mil annos...
Mas eu por mim não sei como me chamo...

Antero de Quental

Homo

Nenhum de vós ao certo me conhece,
Astros do espaço, ramos do arvoredo,
Nenhum adivinhou o meu segredo,
Nenhum interpretou a minha prece...

Ninguem sabe quem sou... e mais, parece
Que ha dez mil annos já, neste degredo,
Me vê passar o mar, vê-me o rochedo
E me contempla a aurora que alvorece...

Sou um parto da Terra monstruoso;
Do humus primitivo e tenebroso
Geração casual, sem pae nem mãe...

Mixto infeliz de trevas e de brilho,
Sou talvez Satanaz; — talvez um filho
Bastardo de Jehovah; — talvez ninguem!

Antero de Quental

A um poeta

Tu que dormes, espírito sereno,
Posto à sombra dos cedros seculares,
Como um levita à sombra dos altares,
Longe da luta e do fragor terreno.

Acorda! É tempo! O sol, já alto e pleno
Afugentou as larvas tumulares...
Para surgir do seio desses mares
Um mundo novo espera só um aceno...

Escuta! É a grande voz das multidões!
São teus irmãos, que se erguem! São canções...
Mas de guerra... e são vozes de rebate!

Ergue-te, pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate!

Antero de Quental

Mais luz !

A Guilherme de Azevedo

Amem a noite os magros crapulosos,
E os que sonham com virgens impossiveis,
E os que inclinam, mudos e impassiveis,
Á borda dos abysmos silenciosos...

Tu, lua, com teus raios vaporosos,
Cobre-os, tapa-os e torna-os insensiveis,
Tanto aos vicios crueis e inextinguiveis,
Como aos longos cuidados dolorosos!

Eu amarei a santa madrugada,
E o meio-dia, em vida refervendo,
E a tarde rumorosa e repousada.

Viva e trabalhe em plena luz: depois,
Seja-me dado ainda ver, morrendo,
O claro sol, amigo dos heroes!

Antero de Quental

Sepultura romântica

Ali, onde o mar quebra, n'um cachão
Rugidor e monotono, e os ventos
Erguem pelo areal os seus lamentos,
Ali se ha-de enterrar meu coração.

Queimem-no os sóes da adusta solidão
Na fornalha do estio, em dias lentos;
Depois, no inverno, os sopros violentos
Lhe revolvam em torno o arido chão...

Até que se desfaça e, já tornado
Em impalpavel pó, seja levado
Nos turbilhões que o vento levantar...

Com suas luctas, seu cançado anceio,
Seu louco amor, dissolva-se no seio
D'esse infecundo, d'esse amargo mar!

Antero de Quental

Voz do Outono

Ouve tu, meu cançado coração,
O que te diz a voz da Natureza:
— «Mais te valera, nú e sem defeza,
Ter nascido em asperrima soidão,

Ter gemido, ainda infante, sobre o chão
Frio e cruel da mais cruel
deveza, Do que embalar-te a Fada da Beleza,
Como embalou, no berço da Ilusão!

Mais valera á tua alma visionaria
Silenciosa e triste ter passado
Por entre o mundo hostil e a turba varia,

(Sem ver uma só flor, das mil, que amaste)
Com odio e raiva e dor... que ter sonhado
Os sonhos ideaes que tu sonhaste!» —

Antero de Quental

Uma amiga

Aqueles que eu amei, nao sei que vento
Os dispersou no mundo, que os nao vejo...
Estendo os bracos e nas trevas beijo
Visoes que a noite evoca o sentimento...

Outros me causam mais cruel tormento
Que a saudade dos mortos... que eu invejo...
Passam por mim... mas como que tem pejo
Da minha soledade e abatimento!

Daquela primavera venturosa
Nao resta uma flor so, uma so rosa...
Tudo o vento varreu, queimou o gelo!

Tu so foste fiel - tu, como dantes,
Inda volves teus olhos radiantes...
Para ver o meu mal... e escarnece-lo!

Antero de Quental

Metempsicose

Ausentes filhas do prazer: dizei-me!
Vossos sonhos quaes são, depois da orgia?
Acaso nunca a imagem fugidia
Do que fostes, em vós se agita e freme?

N'outra vida e outra esphera, aonde geme
Outro vento, e se accende um outro dia,
Que corpo tinheis? que materia fria
Vossa alma incendiou, com fogo estreme?

Vós fostes nas florestas bravas feras,
Arrastando, leôas ou pantheras,
De dentadas de amor um corpo exangue...

Mordei pois esta carne palpitante,
Feras feitas de gaze fluctuante...
Lobas! leôas! sim, bebei meu sangue!

Antero de Quental

Ideal

Aquela, que eu adoro, não é feita
De lyrios nem de rosas purpurinas,
Não tem as formas languidas, divinas
Da antiga Venus de cintura estreita...

Não é a Circe, cuja mão suspeita
Compõe filtros mortaes entre ruinas,
Nem a Amazona, que se agarra ás crinas
D'um corcel e combate satisfeita...

A mim mesmo pergunto, e não atino
Com o nome que dê a essa visão,
Que ora amostra ora esconde o meu destino...

É como uma miragem, que entrevejo,
Ideal, que nasceu na solidão,
Nuvem, sonho impalpavel do Desejo...

Antero de Quental

Jura

Pelas rugas da fronte que medita...
Pelo olhar que interroga — e não vê nada...
Pela miseria e pela mão gelada
Que apaga a estrela que nossa alma fita...

Pelo estertor da chama que crepita
No ultimo arranco d'uma luz minguada...
Pelo grito feroz da abandonada
Que um momento de amante fez maldita...

Por quanto ha de fatal, que quanto ha mixto
De sombra e de pavor sob uma lousa...
Oh pomba meiga, pomba de esperança!

Eu t'o juro, menina, tenho visto
Cousas terriveis — mas jamais vi cousa
Mais feroz do que um riso de criança!

Antero de Quental

Na mão de Deus

Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despôjo vão,
Depus do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.

Como criança, em lôbrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,

Selvas, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!

Antero de Quental

O que diz a Morte

Deixai-os vir a mim, os que lidaram;
Deixai-os vir a mim, os que padecem;
E os que cheios de mágoa e tédio encaram
As próprias obras vãs, de que escarnecem...

Em mim, os Sofrimentos que não saram,
Paixão, Dúvida e Mal, se desvanecem.
As torrentes da Dor, que nunca param,
Como num mar, em mim desaparecem. -

Assim a Morte diz. Verbo velado,
Silencioso intérprete sagrado
Das cousas invisíveis, muda e fria,

É, na sua mudez, mais retumbante
Que o clamoroso mar; mais rutilante,
Na sua noite, do que a luz do dia.

Antero de Quental

Logos

(Ao snr. D. Nicolau Salmeron)

Tu, que eu não vejo, e estás ao pé de mim
E, o que é mais, dentro de mim — que me rodeias
Com um nimbo de affectos e de ideas,
Que são o meu principio, meio e fim...

Que estranho ser és tu (se és ser) que assim
Me arrebatas comtigo e me passeias
Em regiões innominadas, cheias
De encanto e de pavor... de não e sim...

És um reflexo apenas da minha alma,
E em vez de te encarar com fronte calma,
Sobresalto-me ao ver-te, e tremo e exoro-te...

Falo-te, calas... calo, e vens attento...
És um pae, um irmão, e é um tormento
Ter-te a meu lado... és um tyranno, e adoro-te!

Antero de Quental

Lucta

Fluxo e refluxo eterno...

João de Deus.

Dorme a noite encostada nas colinas.
Como um sonho de paz e esquecimento
Desponta a lua. Adormeceu o vento,
Adormeceram vales e campinas...

Mas a mim, cheia de attracções divinas,
Dá-me a noite rebate ao pensamento.
Sinto em volta de mim, tropel nevoento,
Os Destinos e as Almas peregrinas!

Insondavel problema!... Apavorado
Recúa o pensamento!... E já prostrado
E estupido á força de fadiga,

Fito inconsciente as sombras visionarias,
Emquanto pelas praias solitarias
Echoa, ó mar, a tua voz antiga.

Antero de Quental

Voz interior

(A João de Deus)

Embebido n'um sonho doloroso,
Que atravessam phantasticos clarões,
Tropeçando n'um povo de visões,
Se agita meu pensar tumultuoso...

Com um bramir de mar tempestuoso
Que até aos céos arroja os seus cachões,
Atravez d'uma luz de exhalações,
Rodeia-me o Universo monstruoso...

Um ai sem termo, um tragico gemido
Echoa sem cessar ao meu ouvido,
Com horrivel, monotono vaivem...

Só no meu coração, que sondo e meço,
Não sei que voz, que eu mesmo desconheço,
Em segredo protesta e affirma o Bem!

Antero de Quental

Redenção

(À Exma Sra D. Celeste C. B. R.)

I

Vozes do mar, das arvores, do vento!
Quando ás vezes, n'um sonho doloroso,
Me embala o vosso canto poderoso,
Eu julgo igual ao meu vosso tormento...

Verbo crepuscular e intimo alento
Das cousas mudas; psalmo mysterioso;
Não serás tu, queixume vaporoso,
O suspiro do mundo e o seu lamento?

Um espirito habita a immensidade:
Uma ancia cruel de liberdade
Agita e abala as formas fugitivas.

E eu comprehendo a vossa lingua estranha,
Vozes do mar, da selva, da montanha...
Almas irmans da minha, almas captivas!

II

Não choreis, ventos, arvores e mares,
Côro antigo de vozes rumorosas,
Das vozes primitivas, dolorosas
Como um pranto de larvas tumulares...

Da sombra das visões crepusculares
Rompendo, um dia, surgireis radiosas
D'esse sonho e essas ancias affrontosas,
Que exprimem vossas queixas singulares...

Almas no limbo ainda da existencia,
Accordareis um dia na Consciencia,
E pairando, já puro pensamento,

Vereis as Formas, filhas da Ilusão,
Cahir desfeitas, como um sonho vão...
E acabará por fim vosso tormento.

Antero de Quental

Lacrimae Rerum

Noite, irmã da Razão e irmã da Morte,
Quantas vezes tenho eu interrogado
Teu verbo, teu oráculo sagrado,
Confidente e intérprete da Sorte!

Aonde são teus sóis, como coorte
De almas inquietas, que conduz o Fado?
E o homem porque vaga desolado
E em vão busca a certeza que o conforte?

Mas, na pompa de imenso funeral,
Muda, a noite, sinistra e triunfal,
Passa volvendo as horas vagarosas...

É tudo, em torno a mim, dúvida e luto;
E, perdido num sonho imenso, escuto
O suspiro das coisas tenebrosas...

Antero de Quental

Elogio da Morte

Morrer é ser iniciado.

Anthologia Grega.

I

Altas horas da noite, o Inconsciente
Sacode-me com força, e accórdo em susto.
Como se o esmagassem de repente,
Assim me pára o coração robusto.

Não que de larvas me povôe a mente
Esse vacuo nocturno, mudo e augusto,
Ou forceje a razão por que afugente
Algum remorso, com que encara a custo...

Nem phantasmas nocturnos visionarios,
Nem desfilar de espectros mortuarios,
Nem dentro de mim terror de Deus ou Sorte...

Nada! o fundo dum poço, humido e morno,
Um muro de silencio e treva em torno,
E ao longe os passos sepulcraes da Morte.

II

Na floresta dos sonhos, dia a dia,
Se interna meu dorido pensamento.
Nas regiões do vago esquecimento
Me conduz, passo a passo, a phantasia.

Atravesso, no escuro, a nevoa fria
D'um mundo estranho, que povôa o vento,
E meu queixoso e incerto sentimento
Só das visões da noite se confia.

Que mysticos desejos me enlouquecem?
Do Nirvâna os abysmos apparecem,
A meus olhos, na muda immensidade!

N'esta viagem pelo ermo espaço,
Só busco o teu encontro e o teu abraço,
Morte! irman do Amor e da Verdade!

III

Eu não sei quem tu és — mas não procuro
(Tal é minha confiança) devassal-o.
Basta sentir-te ao pé de mim, no escuro,
Entre as fórmas da noite, com quem falo.

Atravez do silencio frio e obscuro
Teus passos vou seguindo, e, sem abalo,
No cairel dos abysmos do Futuro
Me inclino á tua voz, para sondal-o.

Por ti me engolfo no nocturno mundo
Das visões da região innominada,
A ver se fixo o teu olhar profundo...

Fixal-o, comprehendel-o, basta uma hora,
Funerea Beatriz de mão gelada...
Mas unica Beatriz consoladora!

IV

Longo tempo ignorei (mas que cegueira
Me trazia este espirito ennublado!)
Quem fosses tu, que andavas a meu lado,
Noite e dia, impassivel companheira...

Muitas vezes, é certo, na canceira,
No tedio extremo d'um viver maguado,
Para ti levantei o olhar turbado,
Invocando-te, amiga derradeira...

Mas não te amava então nem conhecia:
Meu pensamento inerte nada lia
Sobre essa muda fronte, austera e calma.

Luz intima, afinal, alumiou-me...
Filha do mesmo pae, já sei teu nome,
Morte, irman coeterna da minha alma!

V

Que nome te darei, austera imagem,
Que avisto já n'um angulo da estrada,
Quando me desmaiava a alma prostrada
Do cançaço e do tedio da viagem?

Em teus olhos vê a turba uma voragem,
Cobre o rosto e recúa apavorada...
Mas eu confio em ti, sombra velada,
E cuido perceber tua linguagem...

Mais claros vejo, a cada passo, escritos,
Filha da noite, os lemmas do Ideal,
Nos teus olhos profundos sempre fitos...

Dormirei no teu seio inalteravel,
Na communhão da paz universal,
Morte libertadora e inviolavel!

VI

Só quem teme o Não-ser é que se assusta
Com teu vasto silencio mortuario,
Noite sem fim, espaço solitario,
Noite da Morte, tenebrosa e augusta...

Eu não: minh'alma humilde mas robusta
Entra crente em teu atrio funerario:
Para os mais és um vacuo cinerario,
A mim sorri-me a tua face adusta.

A mim seduz-me a paz santa e ineffavel
E o silencio sem par do Inalteravel,
Que envolve o eterno amor no eterno luto.

Talvez seja peccado procurar-te,
Mas não sonhar comtigo e adorar-te,
Não-ser, que és o Ser unico absoluto.

Antero de Quental

Evolução

Fui rocha em tempo, e fui no mundo antigo
tronco ou ramo na incógnita floresta...
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquíssimo inimigo...

Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
O, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paul, glauco pascigo...

Hoje sou homem, e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, da imensidade...

Interrogo o infinito e às vezes choro...
Mas estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente à liberdade.

Antero de Quental

Transcendentalismo

(A J. P. Oliveira Martins)

Já socega, depois de tanta lucta,
Já me descança em paz o coração.
Cahi na conta, emfim, de quanto é vão
O bem que ao Mundo e á Sorte se disputa.

Penetrando, com fronte não enxuta,
No sacrario do templo da Ilusão,
Só encontrei, com dor e confusão,
Trevas e pó, uma materia bruta...

Não é no vasto mundo — por immenso
Que ele pareça á nossa mocidade —
Que a alma sacia o seu desejo intenso...

Na esphera do invisivel, do intangivel,
Sobre desertos, vacuo, soledade,
Vôa e paira o espirito impassivel!

Antero de Quental

Visão

(A J. M. Eça de Queiroz)

Eu vi o Amor — mas nos seus olhos baços
Nada sorria já: só fixo e lento
Morava agora ali um pensamento
De dor sem tregoa e de intimos cançaços.

Pairava, como espectro, nos espaços,
Todo envolto n'um nimbo pardacento...
Na attitude convulsa do tormento,
Torcia e retorcia os magros braços...

E arrancava das aras destroçadas
A uma e uma as pennas maculadas,
Soltando a espaços um soluço fundo,

Soluço de odio e raiva impenitentes...
E do phantasma as lagrimas ardentes
Cahiam lentamente sobre o mundo!

Antero de Quental

No circo

(A João de Deus)

Muito longe d'aqui, nem eu sei quando,
Nem onde era esse mundo, em que eu vivia...
Mas tão longe... que até dizer podia
Que emquanto lá andei, andei sonhando...

Porque era tudo ali aereo e brando,
E lucida a existencia amanhecia...
E eu... leve como a luz... até que um dia
Um vento me tomou, e vim rolando...

Cahi e achei-me, de repente, involto
Em lucta bestial, na arena fera,
Onde um bruto furor bramia solto.

Senti um monstro em mim nascer n'essa hora,
E achei-me de improviso feito fera...
— É assim que rujo entre leões agora!

Antero de Quental

Ignotus

A Salomão Sáragga)

Onde te escondes? Eis que em vão clamamos,
Suspirando e erguendo as mãos em vão!
Já a voz enrouquece e o coração
Está cançado — e já desesperamos...

Por céo, por mar e terras procuramos
O Espirito que enche a solidão,
E só a propria voz na immensidão
Fatigada nos volve... e não te achamos!

Céos e terra, clamai, aonde? aonde? —
Mas o Espirito antigo só responde,
Em tom de grande tedio e de pezar:

— Não vos queixeis, ó filhos da anciedade,
Que eu mesmo, desde toda a eternidade,
Tambem me busco a mim... sem me encontrar!

Antero de Quental

No turbilhão

(A Jayme Batalha Reis)

No meu sonho desfilam as visões,
Espectros dos meus proprios pensamentos,
Como um bando levado pelos ventos,
Arrebatado em vastos turbilhões...

N'uma espiral, de estranhas contorsões,
E d'onde sáem gritos e lamentos,
Vejo-os passar, em grupos nevoentos,
Distingo-lhes, a espaços, as feições...

— Phantasmas de mim mesmo e da minha alma,
Que me fitaes com formidavel calma,
Levados na onda turva do escarceo,

Quem sois vós, meus irmãos e meus algozes?
Quem sois, visões miserrimas e atrozes?
Ai de mim! ai de mim! e quem sou eu?!...

Antero de Quental

Quia aeternus

(A Joaquim de Araujo)

Não morreste, por mais que o brade á gente
Uma orgulhosa e van philosophia...
Não se sacode assim tão facilmente
O jugo da divina tyrannia!

Clamam em vão, e esse triumpho ingente
Com que a Razão — coitada! — se inebria,
É nova forma, apenas, mais pungente,
Da tua eterna, tragica ironia.

Não, não morreste, espectro! o Pensamento
Como d'antes te encara, e és o tormento
De quantos sobre os livros desfalecem.

E os que folgam na orgia impia e devassa
Ai! quantas vezes ao erguer a taça,
Param, e estremecendo, empalidecem!

Antero de Quental

À virgem santíssima

Cheia de Graça, Mãe de Misericordia

N'um sonho todo feito de incerteza,
De nocturna e indizivel anciedade,
É que eu vi teu olhar de piedade
E (mais que piedade) de tristeza...

Não era o vulgar brilho da beleza,
Nem o ardor banal da mocidade...
Era outra luz, era outra suavidade,
Que até nem sei se as ha na natureza...

Um mystico soffrer... uma ventura
Feita só do perdão, só da ternura
E da paz da nossa hora derradeira...

Ó visão, visão triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa...
E deixa-me sonhar a vida inteira!

Antero de Quental

O convertido

Entre os filhos dum século maldito
Tomei também lugar na ímpia mesa,
Onde, sob o folgar, geme a tristeza
Duma ânsia impotente de infinito.

Como os outros, cuspi no altar avito
Um rir feito de fel e de impureza...
Mas um dia abalou-se-me a firmeza,
Deu-me um rebate o coração contrito!

Erma, cheia de tédio e de quebranto,
Rompendo os diques ao represo pranto,
Virou-se para Deus minha alma triste!

Amortalhei na Fé o pensamento,
E achei a paz na inércia e esquecimento...
Só me falta saber se Deus existe!

Antero de Quental

Espiritualismo

I

Como um vento de morte e de ruina,
A Duvida soprou sobre o Universo.
Fez-se noite de subito, immerso
O mundo em densa e algida neblina.

Nem astro já reluz, nem ave trina,
Nem flor sorri no seu aereo berço.
Um veneno sutil, vago, disperso,
Empeçonhou a criação divina.

E, no meio da noite monstruosa,
Do silencio glacial, que paira e estende
O seu sudario, d'onde a morte pende,

Só uma flor humilde, mysteriosa,
Como um vago protesto da existencia,
Desabroxa no fundo da Consciencia.

II

Dorme entre os gelos, flor immaculada!
Lucta, pedindo um ultimo clarão
Aos soes que ruem pela immensidão,
Arrastando uma aureola apagada...

Em vão! Do abysmo a bocca escancarada
Chama por ti na gélida amplidão...
Sobe do poço eterno, em turbilhão,
A treva primitiva conglobada...

Tu morrerás tambem. Um ai supremo,
Na noite universal que envolve o mundo,
Ha-de ecchoar, e teu perfume extremo

No vacuo eterno se esvahirá disperso,
Como o alento final d'um moribundo,
Como o ultimo suspiro do Universo.

Antero de Quental

Velut Umbra

Fumo e scismo. Os castelos do horizonte
Erguem-se, á tarde, e crescem, de mil cores,
E ora espalham no céo vivos ardores,
Ora fumam, vulcões de estranho monte...

Depois, que formas vagas vêm defronte,
Que parecem sonhar loucos amores?
Almas que vão, por entre luz e horrores,
Passando a barca d'esse aereo Acheronte...

Apago o meu charuto quando apagas
Teu facho, oh sol... ficamos todos sós...
É n'esta solidão que me consumo!

Oh nuvens do Occidente, oh cousas vagas,
Bem vos entendo a cor, pois, como a vós,
Beleza e altura se me vão em fumo!

Antero de Quental

Na capela

Na capela, perdida entre a folhagem,
O Christo, lá no fundo, agonisava...
Oh! como intimamente se casava
Com minha dor a dor d'aquela imagem!

Filhos ambos do amor, igual miragem
Nos roçou pela fronte, que escaldava...
Igual traição, que o affecto mascarava,
Nos deu supplicio ás mãos da vilanagem...

E agora, ali, em quanto da floresta
A sombra se infiltrava lenta e mesta,
Vencidos ambos, martyres do Fado,

Fitavamo-nos mudos — dor igual! —
Nem, dos dois, saberei dizer-vos qual
Mais palido, mais triste e mais cançado...

Antero de Quental

Amaritudo

Só por ti, astro ainda e sempre oculto,
Sombra do Amor e sonho da Verdade,
Divago eu pelo mundo e em anciedade
Meu próprio coração em mim sepulto.

De templo em templo, em vão, levo o meu culto,
Levo as flores d'uma íntima piedade.
Vejo os votos da minha mocidade
Receberem somente escárneo e insulto.

À beira do caminho me assentei...
Escutarei passar o agreste vento,
Exclamando: assim passe quando amei! —

Oh minh'alma, que creste na virtude!
O que será velhice e desalento,
Se isto se chama aurora e juventude?

Antero de Quental

Sonho

Sonhei - nem sempre o sonho é coisa vã -
Que um vento me levava arrebatado,
Através desse espaço constelado
Onde uma aurora eterna ri louçã...

As estrelas, que guardam a manhã,
Ao verem-me passar triste e calado,
Olhavam-me e diziam com cuidado:
Onde está, pobre amigo, a nossa irmã?

Mas eu baixava os olhos, receoso
Que traíssem as grandes mágoas minhas,
E passava furtivo e silencioso,

Nem ousava contar-lhes, às estrelas,
Contar às tuas puras irmãzinhas
Quanto és falsa, meu bem, e indigna delas!

Antero de Quental

Noturno

Espírito que passas, quando o vento
Adormece no mar e surge a Lua,
Filho esquivo da noite que flutua,
Tu só entendes bem o meu tormento...

Como um canto longínquo - triste e lento-
Que voga e sutilmente se insinua,
Sobre o meu coração que tumultua,
Tu vestes pouco a pouco o esquecimento...

A ti confio o sonho em que me leva
Um instinto de luz, rompendo a treva,
Buscando. entre visões, o eterno Bem.

E tu entendes o meu mal sem nome,
A febre de Ideal, que me consome,
Tu só, Gênio da Noite, e mais ninguém!

Antero_de_Quental

Idílio

Quando nós vamos ambos, de mãos dadas,
Colher nos vales lírios e boninas,
E galgamos dum fôlego as colinas
Dos rocios da noite inda orvalhadas;

Ou, vendo o mar das ermas cumeadas
Contemplamos as nuvens vespertinas,
Que parecem fantásticas ruínas
Ao longo, no horizonte, amontoadas:

Quantas vezes, de súbito, emudeces!
Não sei que luz no teu olhar flutua;
Sinto tremer-te a mão e empalideces

O vento e o mar murmuram orações,
E a poesia das coisas se insinua
Lenta e amorosa em nossos corações.

Antero de Quental

Quinze anos

Eu amo a vasta sombra das montanhas,
Que estendem sobre os largos continentes
Os seus braços de rocha negra, ingentes,
Bem como braços colossaes aranhas.

D'ali o nosso olhar vê tão estranhas
Cousas, por esse céo! e tão ardentes
Visões, lá n'esse mar de ondas trementes!
E ás estrelas, d'ali, vê-as tamanhas!

Amo a grandeza mysteriosa e vasta...
A grande idea, como a flor e o viço
Da arvore colossal que nos domina...

Mas tu, criança, sê tu boa... e basta:
Sabe amar e sorrir... é pouco isso?
Mas a ti só te quero pequenina!

Antero de Quental
Obtido em "http://pt.wikisource.org/wiki/Quinze_anos_(Antero_de_Quental)"

Sonho Oriental

Sonho-me ás vezes rei, n'alguma ilha,
Muito longe, nos mares do Oriente,
Onde a noite é balsamica e fulgente
E a lua cheia sobre as aguas brilha...

O aroma da magnolia e da baunilha
Paira no ar diaphano e dormente...
Lambe a orla dos bosques, vagamente,
O mar com finas ondas de escumilha...

E emquanto eu na varanda de marfim
Me encosto, absorto n'um scismar sem fim,
Tu, meu amor, divagas ao luar,

Do profundo jardim pelas clareiras,
Ou descanças debaixo das palmeiras,
Tendo aos pés um leão familiar.

Antero de Quental

Pequenina

Eu bem sei que te chamam pequenina
E tenue como o véo solto na dança,
Que és no juizo apenas a criança,
Pouco mais, nos vestidos, que a menina...

Que és o regato de agua mansa e fina,
A folhinha do til que se balança,
O peito que em correndo logo cança,
A fronte que ao soffrer logo se inclina...

Mas, filha, lá nos montes onde andei,
Tanto me enchi de angustia e de receio
Ouvindo do infinito os fundos ecchos,

Que não quero imperar nem já ser rei
Senão tendo meus reinos em teu seio
E subditos, criança, em teus bonecos!

Antero de Quental

Visita

Adornou o meu quarto a flor do cardo,
Perfumei-o de almiscar recendente;
Vesti-me com a purpura fulgente,
Ensaiando meus cantos, como um bardo;

Ungi as mãos e a face com o nardo
Crescido nos jardins do Oriente,
A receber com pompa, dignamente,
Mysteriosa visita a quem aguardo.

Mas que filha de reis, que anjo ou que fada
Era essa que assim a mim descia,
Do meu casebre á humida pousada?...

Nem princezas, nem fadas. Era, flor,
Era a tua lembrança que batia
Ás portas de ouro e luz do meu amor!

Antero de Quental
Obtido em "http://pt.wikisource.org/wiki/Visita"

A um crucifixo

Há mil anos, bom Cristo, ergueste os magros braços
E clamaste da cruz: há Deus! e olhaste, ó crente,
O horizonte futuro e viste, em tua mente,
Um alvor ideal banhar esses espaços!

Por que morreu sem eco, o eco de teus passos,
E de tua palavra (ó Verbo!) o som fremente?
Morreste... ah! dorme em paz! não volvas, que descrente
Arrojáras de nova á campa os membros lassos...

Agora, como então, na mesma terra erma,
A mesma humanidade é sempre a mesma enferma,
Sob o mesmo ermo céu, frio como um sudário...

E agora, como então, viras o mundo exangue,
E ouviras perguntar — de que servio o sangue
Com que regaste, ó Cristo, as urzes do Calvário? —

Antero de Quental
Obtido em "http://pt.wikisource.org/wiki/A_um_crucifixo"

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

Não busco n`esta vida glória ou fama

A M. C.

Não busco n'esta vida glória ou fama:
Das turbas que me importa o vão ruído?
Hoje, deus... e amanhã, já esquecido
Como esquece o clarão de extincta chama!

Foco incerto, que a luz já mal derrama,
Tal é essa ventura: eccho perdido,
Quanto mais se chamou, mais escondido
Ficou inerte e mudo á voz que o chama.

D'essa coroa é cada flor um engano,
É miragem em nuvem ilusoria,
É mote vão de fabuloso arcano.

Mas coroa-me tu: na fronte inglória
Cinge-me tu o louro soberano...
Verás, verás então se amo essa glória!

Antero de Quental

Só males são reais, só dor existe

A Germano Meireles

Só males são reais, só dor existe:
Prazeres só os gera a fantasia;
Em nada[, um] imaginar, o bem consiste,
Anda o mal em cada hora e instante e dia.

Se buscamos o que é, o que devia
Por natureza ser não nos assiste;
Se fiamos num bem, que a mente cria,
Que outro remédio há [aí] senão ser triste?

Oh! Quem tanto pudera que passasse
A vida em sonhos só. E nada vira...
Mas, no que se não vê, labor perdido!

Quem fora tão ditoso que olvidasse...
Mas nem seu mal com ele então dormira,
Que sempre o mal pior é ter nascido!

Antero de Quental

Não me fales de glória: é outro o altar

A Alberto Sampaio

Não me fales de glória: é outro o altar
Onde queimo piedoso o meu incenso,
E animado de fogo mais intenso,
De fé mais viva, vou sacrificar.

A glória! pois que ha n'ela que adorar?
Fumo, que sobre o abysmo anda suspenso...
Que vislumbre nos dá do amor immenso?
Esse amor que ventura faz gosar?

Ha outro mais perfeito, unico eterno,
Farol sobre ondas tormentosas firme,
De immoto brilho, poderoso e terno...

Só esse hei-de buscar, e confundir-me
Na essencia do amor puro, sempiterno...
Quero só n'esse fogo consumir-me!

Antero de Quental

Porque descrês, mulher, do amor, da vida ?

A M. C.

Porque descrês, mulher, do amor, da vida?
Porque esse Hermon transformas em Calvario?
Porque deixas que, aos poucos, do sudario
Te aperte o seio a dobra humedecida?

Que visão te fugio, que assim perdida
Buscas em vão n'este ermo solitario?
Que signo obscuro de cruel fadario
Te faz trazer a fronte ao chão pendida?

Nenhum! intacto o bem em ti assiste:
Deus, em penhor, te deu a formosura;
Bençãos te manda o céo em cada hora.

E descrês do viver?... E eu, pobre e triste,
Que só no teu olhar leio a ventura,
Se tu descrês, em que hei-de eu crer agora?

Antero de Quental

Sempre o futuro, sempre ! E o presente

A J. Felix dos Santos

Sempre o futuro, sempre! e o presente
Nunca! Que seja esta hora em que se existe
De incerteza e de dor sempre a mais triste,
E só farte o desejo um bem ausente!

Ai! que importa o futuro, se inclemente
Essa hora, em que a esperança nos consiste,
Chega... é presente... e só á dor assiste?...
Assim, qual é a esperança que não mente?

Desventura ou delirio?... O que procuro,
Se me foge, é miragem enganosa,
Se me espera, peor, espectro impuro...

Assim a vida passa vagarosa:
O presente, a aspirar sempre ao futuro:
O futuro, uma sombra mentirosa.

Antero de Quental

Só! - Ao ermita sozinho na montanha

A Alberto Teles

Só! — Ao ermita sósinho na montanha
Visita-o Deus e dá-lhe confiança:
No mar, o nauta, que o tufão balança,
Espera um sopro amigo que o céo tenha...

Só! — Mas quem se assentou em riba estranha,
Longe dos seus, lá tem inda a lembrança:
E Deus deixa-lhe ao menos a esperança
Ao que á noite soluça em erma penha...

Só! — Não o é quem na dor, quem nos cançaços,
Tem um laço que o prenda a este fadario.
Uma crença, um desejo... e inda um cuidado...

Mas cruzar, com desdem, inertes braços,
Mas passar, entre turbas, solitario,
Isto é ser só, é ser abandonado!

Antero de Quental

A João de Deus

Se é lei, que rege o escuro pensamento,
Ser vã toda a pesquisa da verdade,
Em vez da luz achar a escuridade,
Ser uma queda nova cada invento;

É lei também, embora cru tormento,
Buscar, sempre buscar a claridade,
E só ter como certa realidade
O que nos mostra claro o entendimento.

O que há de a alma escolher, em tanto engano?
Se uma hora crê de fé, logo duvida;
Se procura, só acha... o desatino!

Só Deus pode acudir em tanto dano:
Esperemos a luz duma outra vida,
Seja a terra degrêdo, o céu destino.

Antero de Quental

No céu, se existe um céu para quem chora

A M.C.

No céo, se existe um céo para quem chora.
Céo, para as magoas de quem soffre tanto...
Se é lá do amor o foco, puro e santo,
Chama que brilha, mas que não devora...

No céo, se uma alma n'esse espaço mora.
Que a prece escuta e encharga o nosso pranto...
Se ha Pae, que estenda sobre nós o manto
Do amor piedoso... que eu não sinto agora...

No céo, ó virgem! findarão meus males:
Hei-de lá renascer, eu que pareço
Aqui ter só nascido para dôres.

Ali, ó lyrio dos celestes vales!
Tendo seu fim, terão o seu começo.
Para não mais findar, nossos amores.

Antero de Quental

Psalmo

Esperemos em Deus! Ele ha tomado
Em suas mãos a massa inerte e fria
Da materia impotente e, n'um só dia,
Luz, movimento, acção, tudo lhe ha dado.

Ele, ao mais pobre de alma, ha tributado
Desvelo e amor: ele conduz á via
Segura quem lhe foge e se extravia,
Quem pela noite andava desgarrado.

E a mim, que aspiro a ele, a mim, que o amo,
Que anceio por mais vida e maior brilho.
Ha-de negar-me o termo d'este anceio?

Buscou quem o não quiz; e a mim, que o chamo,
Ha-de fugir-me, como a ingrato filho?
Ó Deus, meu pae e abrigo! espero!... eu creio!

Antero de Quental

Se comparo poder ou ouro ou fama

A Florido Teles

Se comparo poder ou ouro ou fama,
Venturas que em si têm occulto o damno,
Com aquele outro affecto soberano,
Que amor se diz e é luz de pura chama,

Vejo que são bem como arteira dama,
Que sob honesto riso esconde o engano,
E o que as segue, como homem leviano
Que por um vão prazer deixa quem ama.

Nasce do orgulho aquele esteril goso
E a glória d'ele é cousa fraudulenta,
Como quem na vaidade tem a palma:

Tem na paixão seu brilho mais formoso
E das paixões tambem some-o a tormenta...
Mas a glória do amor... essa vem d'alma!

Antero de Quental

Poz-te Deus sobre a fronte a mão piedosa

A M. C.
Poz-te Deus sobre a fronte a mão piedosa:
O que fada o poeta e o soldado
Volveu a ti o olhar, de amor velado,
E disse-te: «vae, filha, sê formosa!»

E tu, descendo na onda harmoniosa,
Pousaste n'este solo angustiado,
Estrela envolta n'um clarão sagrado,
Do teu limpido olhar na luz radiosa...

Mas eu... posso eu acaso merecer-te?
Deu-te o Senhor, mulher! o que é vedado,
Anjo! Deu-te o Senhor um mundo á parte.

E a mim, a quem deu olhos para ver-te,
Sem poder mais... a mim o que me ha dado?
Voz, que te cante, e uma alma para amar-te!

Antero de Quental

Hino da manhã

Tu, casta e alegre luz da madrugada,
Sobe, cresce no céo, pura e vibrante,
E enche de força o coração triumphante
Dos que ainda esperam, luz immaculada!

Mas a mim pões-me tu tristeza immensa
No desolado coração. Mais quero
A noite negra, irmã do desespero,
A noite solitaria, immovel, densa,

O vacuo mudo, onde astro não palpita,
Nem ave canta, nem susurra o vento,
E adormece o proprio pensamento,
Do que a luz matinal... a luz bemdita!

Porque a noite é a imagem do Não-Ser,
Imagem do repouso inalteravel
E do esquecimento inviolavel,
Que anceia o mundo, farto de soffrer...

Porque nas trevas sonda, fixo e absorto,
O nada universal o pensamento,
E despreza o viver e o seu tormento.
E olvida, como quem está já morto...

E, interrogando intrepido o Destino,
Como reu o renega e o condemna,
E virando-se, fita em paz serena
O vacuo augusto, placido e divino...

Porque a noite é a imagem da Verdade,
Que está além das cousas transitorias.
Das paixões e das formas ilusorias,
Onde sómente ha dor e falsidade...

Mas tu, radiante luz, luz gloriosa,
De que és symbolo tu? do eterno engano,
Que envolve o mundo e o coração humano
Em rede de mil malhas, mysteriosa!

Symbolo, sim, da universal traição,
D'uma promessa sempre renovada
E sempre e eternamente perjurada,
Tu, mãe da Vida e mãe da Ilusão...

Outros estendam para ti as mãos,
Supplicantes, com fé, com esperança...
Ponham outros seu bem, sua confiança
Nas promessas e a luz dos dias vãos...

Eu não! Ao ver-te, penso: Que agonia
E que tortura ainda não provada
Hoje me ensinará esta alvorada?
E digo: Porque nasce mais um dia?

Antes tu nunca fosses, luz formosa!
Antes nunca existisses! e o Universo
Ficasse inerte e eternamente immerso
Do possivel na nevoa duvidosa!

O que trazes ao mundo em cada aurora?
O sentimento só, só a consciencia,
D'uma eterna, incuravel impotencia,
Do insaciavel desejo, que o devora!

De que são feitos os mais belos dias?
De combates, de queixas, de terrores!
De que são feitos? de ilusões, de dores,
De miserias, de maguas, de agonias!

O sol, inexoravel semeador,
Sem jamais se cançar, percorre o espaço,
E em borbotões lhe jorram do regaço
As sementes innumeras da Dor!

Oh! como cresce, sob a luz ardente,
A seara maldita! como treme
Sob os ventos da vida e como geme
N'um susurro monotono e plangente!

E cresce e alastra, em ondas voluptuosas,
Em ondas de cruel fecundidade,
Com a força e a subtil tenacidade
Invencivel das plantas venenosas!

De podridões antigas se alimenta,
Da antiga podridão do chão fatal...
Uma fragrancia morbida, mortal
Lhe reçuma da seiva peçonhenta...

E é esse aroma languido e profundo,
Feito de seducções vagas, magneticas,
De ardor carnal e de attracções poeticas,
É esse aroma que envenena o mundo!

Como um clarim soando pelos montes,
A aurora acorda, placida e inflexivel,
As miserias da terra: e a hoste horrivel,
Enchendo de clamor e horisontes.

Torva, cega, colerica, faminta,
Surge mais uma vez e arma-se á pressa
Para o bruto combate, que não cessa,
Onde é vencida sempre e nunca extincta!

Quantos erguem n'esta hora, com esforço,
Para a luz matinal as armas novas,
Pedindo a lucta e as formidaveis provas,
Alegres e crueis e sem remorso,

Que esta tarde ha-de ver, no duro chão
Cahidos e sangrentos, vomitando
Contra o céo, com o sangue miserando,
Uma extrema e importante imprecação!

Quantos tambem, de pé, mas esquecidos,
Ha-de a noite encontrar, sós e encostados
A algum marco, chorando aniquilados
As lagrimas caladas dos vencidos!

E porque? para que? para que os chamas,
Serena luz, ó luz inexoravel,
Á vida incerta e á lucta inexpiavel,
Com as falsas visões, com que os inflamas?

Para serem o brinco d'um só dia
Na mão indifferente do Destino...
Clarão de fogo-fatuo repentino,
Cruzando entre o nascer e a agonia...

Para serem, no páramo enfadonho,
Á luz de astros malignos e enganosos,
Como um bando de espectros lastimosos,
Como sombras correndo atraz d'um sonho...

Oh! não! luz gloriosa e triumphante!
Sacode embora o encanto e as seducções,
Sobre mim, do teu manto de ilusões:
A meus olhos, és triste e vacilante...

A meus olhos, és baça e luctuosa
E amarga ao coração, ó luz do dia,
Como tocha esquecida que alumia
Vagamente uma crypta monstruosa...

Surges em vão, e em vão, por toda a parte,
Me envolves, me penetras, com amor...
Causas-me espanto a mim, causas-me horror,
E não te posso amar — não quero amar-te!

Symbolo da Mentira universal,
Da apparencia das cousas fugitivas,
Que esconde, nas moventes perspectivas,
Sob o eterno sorriso o eterno Mal,

Symbolo da Ilusão, que do infinito
Fez surgir o Universo, já marcado
Para a dor, para o mal, para o peccado,
Symbolo da existencia, sê maldito!

Antero de Quental