sábado, 18 de outubro de 2008

Entre Sombras

Vem ás vezes sentar-se ao pé de mim
— A noite desce, desfolhando as rosas
—Vem ter commigo, ás horas duvidosas,
Uma visão, com azas de setim...

Pousa de leve a delicada mão
— Rescende amena a noite socegada
—Pousa a mão compassiva e perfumada
Sobre o meu dolorido coração...

E diz-me essa visão compadecida
— Ha suspiros no espaço vaporoso
—Diz-me: Porque é que choras silencioso?
Porque é tão erma e triste a tua vida?

Vem commigo! Embalado nos meus braços
— Na noite funda ha um silencio santo
—N'um sonho feito só de luz e encanto
Transporás a dormir esses espaços...

Porque eu habito a região distante
— A noite exhala uma doçura infinda
—Onde ainda se crê e se ama ainda,
Onde uma aurora igual brilha constante...

Habito ali, e tu virás commigo
— Palpita a noite n'um clarão que offusca
—Porque eu venho de longe, em tua busca,
Trazer-te paz e alivio, pobre amigo...

Assim me fala essa visão nocturna
— No vago espaço ha vozes dolorosas
—São as suas palavras carinhosas
Agua correndo em crystalina urna...

Mas eu escuto-a immovel, somnolento
— A noite verte um desconsolo immenso
—Sinto nos membros como um chumbo denso,
E mudo e tenebroso o pensamento...

Fito-a, n'um pasmo doloroso absorto
— A noite é erma como campa enorme
—Fito-a com olhos turvos de quem dorme
E respondo: Bem sabes que estou morto!

Antero de Quental

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